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Domingo, Novembro 24, 2024

Estudo psicanalítico: Como reagimos perante a ameaça surda do corona vírus

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Dois tipos de reações podem surgir diante dessa ameaça. Uma rejeita a realidade, a segunda a aceita e “trabalha com ela”. Todos nós flutuamos entre estas ambas reações ao longo de nossas vidas.

Melanie Klein

Na posição mais primitiva, que chamo de “posição de recusa da realidade” (e que a psicanalista Melanie Klein denominou “posição paranóico-esquizóide”), a mente reage com negação e com um sentimento de omnipotência, por um lado, e em pânico, exagero e desamparo por outro.

A resposta omnipotente procura evitar a dor e a ansiedade através da intensa e excessiva percepção de nossas capacidades.

Essa reação é acompanhado pelo desprezo, cautela, raiva e desdém pela importância das diretivas oficiais, negação da importância do momento e recusa em seguir as instruções. Podem surgir figuras que são declaradas “ideais” e “salvadoras”, mas elas também são coloridas pela divisão radical que caracteriza essa defesa emocional como um meio de voltar a ter o mundo ordenado e lógico, sossegante.

Outro tipo de resposta de “recusa da realidade” ativa um terror infantil de pânico e desamparo, como se dissesse à mãe interior: “Estou a chorar! Mãe, salve-me dessa angústia! “

(Pai! Porque me abandonaste?)

“eli, eli lama sabactani”

A segunda posição (a que M. Klein chamou de “posição depressiva”) é a que chamo de “aceitação da realidade”.

Dessa posição, reconhecemos os perigos da realidade e a nossa vulnerabilidade, mas sentimos segurança interna para poder lidar com a crise. Esta é uma posição mais desenvolvida no seu rápido reconhecimento dos diferentes aspetos da realidade com abertura e modéstia, torna-nos capazes de assumir responsabilidades. Essa visão sóbria é acompanhada de ansiedade e dor, mas também pelo reconhecimento de que este é um momento para não para perder a cabeça no turbilhão que a situação de perigo cria. Essa é uma posição que aceita que só podemos fazer o melhor que sabemos e consola-se com a ideia de que com esse melhor esforço sempre encontrará caminhos para nos defender.

A crise do coronavírus é a personificação do fenómeno que Freud chamou momento irreal. Nesse estado, a pessoa perde a sensação de ser dona de seu destino. Há uma desrealização.

O coronavírus é certamente um grande choque para a nossa rotina, para a ideia que fazemos de nós mesmos e dos outros. O que era familiar e seguro torna-se desconhecido e ameaçador. A estabilidade física é violentamente posta em dúvida.

Reunir-se com as pessoas próximas a nós é definido como perigoso. A vida como a pensávamos, conhecíamos e entendíamos desapareceu.

Mas “essa estranheza” também é uma oportunidade.

Quem somos é posto em causa e torna-se um desafio.

Donald Winnicott

O psicanalista Donald Winnicott observou que o medo do futuro é sempre esboçado em termos do passado. Tememos o que já aconteceu. O que nos aconteceu e o que ouvimos contar, ou lemos que sucedeu em catástrofes anteriores.

Como a história é uma coleção de histórias, as nossas respostas alternativas também são moldadas por essas histórias.

A maioria de nós está oscilando entre sentimentos de esperança e desespero, confiança e medo. Experimentamos essas flutuações porque ambos os sentimentos são igualmente válidos e inválidos, pois não sabemos o que o amanhã trará.

Como isso é insuportável, examinamos possibilidades nas imagens e memórias internas, colocamos imagens claras do passado na parede do futuro, envolta em neblina. Na busca de alguma estimativa para avaliar a realidade atual, cada um de nós está agora lembrando desastres do passado.

As lembranças traumáticas são despertadas e inundam a mente com uma ansiedade poderosa. Mas memórias positivas também surgem e colocam-se à nossa disposição: figuras que nos ensinaram o que é resiliência, períodos difíceis que culminaram em novos começos. Recursos psicológicos como generosidade, moderação, ser capaz de lidar com o stress, ser grato pelo que se tem e pela capacidade de buscar ajuda para os outros – todos agora têm algo de especial.

Uma coisa que pode ser de grande ajuda é ser pro-ativo diante da realidade. As pessoas que encontrarem um papel para si e qualquer tipo de responsabilidade a assumir neste momento, ou que converterem a sua tristeza e ansiedade na criação de algo novo, descobrirão que isso fornece um contrapeso significativo à falta de controle na situação que todos estamos a sentir agora.

Por fim, vale lembrar que, num dado momento (mesmo os mais difíceis) na vida de uma pessoa, muito menos está a acontecer do que o que está a ser mostrado em televisões, jornais, rádios, revistas e plataformas sociais (boatos, rumores, notícias falsas) e também muito menos do que o que está a acontecer no nosso subconsciente (ansiedades profundas, lembranças traumáticas, rumores apocalípticos imaginários sobre o fim do mundo).

A qualquer momento, surge uma pergunta: com que posições e com que espírito queremos enfrentar a realidade. Nesse sentido, sempre temos várias opções à nossa disposição e também um certo grau de controle, mesmo quando confrontados com a realidade mais estranha e ameaçadora.


Nota da autora
Artigo baseado em estudos e escritos da Dr.ª Merav Roth, psicanalista da Universidade de Tel Aviv e autora do livro “Uma perspectiva psicanalítica sobre a leitura de literatura: leitura do leitor”, da Routledge.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90



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