Dois tipos de reações podem surgir diante dessa ameaça. Uma rejeita a realidade, a segunda a aceita e “trabalha com ela”. Todos nós flutuamos entre estas ambas reações ao longo de nossas vidas.
Na posição mais primitiva, que chamo de “posição de recusa da realidade” (e que a psicanalista Melanie Klein denominou “posição paranóico-esquizóide”), a mente reage com negação e com um sentimento de omnipotência, por um lado, e em pânico, exagero e desamparo por outro.
A resposta omnipotente procura evitar a dor e a ansiedade através da intensa e excessiva percepção de nossas capacidades.
Essa reação é acompanhado pelo desprezo, cautela, raiva e desdém pela importância das diretivas oficiais, negação da importância do momento e recusa em seguir as instruções. Podem surgir figuras que são declaradas “ideais” e “salvadoras”, mas elas também são coloridas pela divisão radical que caracteriza essa defesa emocional como um meio de voltar a ter o mundo ordenado e lógico, sossegante.
Outro tipo de resposta de “recusa da realidade” ativa um terror infantil de pânico e desamparo, como se dissesse à mãe interior: “Estou a chorar! Mãe, salve-me dessa angústia! “
(Pai! Porque me abandonaste?)
“eli, eli lama sabactani”
A segunda posição (a que M. Klein chamou de “posição depressiva”) é a que chamo de “aceitação da realidade”.
Dessa posição, reconhecemos os perigos da realidade e a nossa vulnerabilidade, mas sentimos segurança interna para poder lidar com a crise. Esta é uma posição mais desenvolvida no seu rápido reconhecimento dos diferentes aspetos da realidade com abertura e modéstia, torna-nos capazes de assumir responsabilidades. Essa visão sóbria é acompanhada de ansiedade e dor, mas também pelo reconhecimento de que este é um momento para não para perder a cabeça no turbilhão que a situação de perigo cria. Essa é uma posição que aceita que só podemos fazer o melhor que sabemos e consola-se com a ideia de que com esse melhor esforço sempre encontrará caminhos para nos defender.
A crise do coronavírus é a personificação do fenómeno que Freud chamou momento irreal. Nesse estado, a pessoa perde a sensação de ser dona de seu destino. Há uma desrealização.
O coronavírus é certamente um grande choque para a nossa rotina, para a ideia que fazemos de nós mesmos e dos outros. O que era familiar e seguro torna-se desconhecido e ameaçador. A estabilidade física é violentamente posta em dúvida.
Reunir-se com as pessoas próximas a nós é definido como perigoso. A vida como a pensávamos, conhecíamos e entendíamos desapareceu.
Mas “essa estranheza” também é uma oportunidade.
Quem somos é posto em causa e torna-se um desafio.
O psicanalista Donald Winnicott observou que o medo do futuro é sempre esboçado em termos do passado. Tememos o que já aconteceu. O que nos aconteceu e o que ouvimos contar, ou lemos que sucedeu em catástrofes anteriores.
Como a história é uma coleção de histórias, as nossas respostas alternativas também são moldadas por essas histórias.
A maioria de nós está oscilando entre sentimentos de esperança e desespero, confiança e medo. Experimentamos essas flutuações porque ambos os sentimentos são igualmente válidos e inválidos, pois não sabemos o que o amanhã trará.
Como isso é insuportável, examinamos possibilidades nas imagens e memórias internas, colocamos imagens claras do passado na parede do futuro, envolta em neblina. Na busca de alguma estimativa para avaliar a realidade atual, cada um de nós está agora lembrando desastres do passado.
As lembranças traumáticas são despertadas e inundam a mente com uma ansiedade poderosa. Mas memórias positivas também surgem e colocam-se à nossa disposição: figuras que nos ensinaram o que é resiliência, períodos difíceis que culminaram em novos começos. Recursos psicológicos como generosidade, moderação, ser capaz de lidar com o stress, ser grato pelo que se tem e pela capacidade de buscar ajuda para os outros – todos agora têm algo de especial.
Uma coisa que pode ser de grande ajuda é ser pro-ativo diante da realidade. As pessoas que encontrarem um papel para si e qualquer tipo de responsabilidade a assumir neste momento, ou que converterem a sua tristeza e ansiedade na criação de algo novo, descobrirão que isso fornece um contrapeso significativo à falta de controle na situação que todos estamos a sentir agora.
Por fim, vale lembrar que, num dado momento (mesmo os mais difíceis) na vida de uma pessoa, muito menos está a acontecer do que o que está a ser mostrado em televisões, jornais, rádios, revistas e plataformas sociais (boatos, rumores, notícias falsas) e também muito menos do que o que está a acontecer no nosso subconsciente (ansiedades profundas, lembranças traumáticas, rumores apocalípticos imaginários sobre o fim do mundo).
A qualquer momento, surge uma pergunta: com que posições e com que espírito queremos enfrentar a realidade. Nesse sentido, sempre temos várias opções à nossa disposição e também um certo grau de controle, mesmo quando confrontados com a realidade mais estranha e ameaçadora.
Nota da autora
Artigo baseado em estudos e escritos da Dr.ª Merav Roth, psicanalista da Universidade de Tel Aviv e autora do livro “Uma perspectiva psicanalítica sobre a leitura de literatura: leitura do leitor”, da Routledge.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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