A recente suspensão, que se prevê definitiva, da Procuradora-Geral venezuelana constitui, na sua natureza, no seu método e na sua intenção, um momento de esclarecimento histórico. Esta suspensão, decidida por um órgão de legitimidade democrática duvidosa e amplamente questionada, permite colocar algumas questões sobre o presente e o provável futuro político e cívico do país, revelando, para quem não o intuía ainda, o projecto de poder pela qual Nicolás Maduro se apresenta como líder.
Em primeiro lugar, algumas considerações sobre a natureza do processo. A Procuradora-Geral agora suspensa havia sido indigitada no auge da populidade e legitimidade do chamado ‘Chavismo’, um movimento político de contornos ele próprio particularmente curiosos, colagem conveniente de um saudosismo legítimo com a adesão à figura do militar como arauto de salvação. Essa indigitação correspondia, pois, às intenções da figura mitificada e do sistema político que tinha em mente, e que a população sufragou e mandatou com sucesso, logo, uma das materializações desse sistema político, sem prejuízo – aparente – da separação de poderes que deveria configurar.
Em segundo lugar, ao nível do método, esta suspensão constituiu uma das primeiras decisões tomadas por uma designada Assembleia ‘Constituinte’, ela própria resultado de uma decisão política estratégica de Maduro num contexto de guerra aberta entre órgãos de soberania. Ao contrário do que havia sucedido anteriormente com Chávez, neste caso não existiu qualquer investimento na legitimação prévia desse acto ‘eleitoral’, tanto mais necessária quando o contexto de incompatibilidade entre órgãos de soberania se encontrava no seu ponto crítico. A convocação do acto, a mecânica da constituição dos corpos de representação a eleger (amplamente favoráveis a sectores próximos da actual liderança política), as dúvidas lançadas sobre a transparência do processo de votação e contagem (pela mesma empresa que anteriormente havia a assegurado em processos eleitorais envolvendo Cháves e Maduro, e à qual nenhuma suspeita de natureza ética fora antes apontada), e a suspensão de uma Procuradora-Geral na iminência de analisar todo o processo eleitoral e eventuais crimes cometidos no seu decurso – tudo contribuiu para que a ‘eleição’ desta Assembleia ‘Constituinte’ constitua uma resposta acossada, conveniente e contingente, e não o fruto de um natural processo de amadurecimento de uma solução política apoiada pela maioria da população.
Acontece que estes métodos são conhecidos, e definem um tipo de liderança avesso a circunstâncias politicamente desfavoráveis, tipicamente lançando mão de quaisquer instrumentos com a aparência de legitimidade, mas procurando assegurar sobretudo a apropriação absoluta do poder, e a eternização do seu exercício exclusivo. A forma como se instrumentaliza agora uma Assembleia ‘Constituinte’, a somar à anterior instrumentalização do Supremo Tribunal na usurpação e concentração tentada do poder legislativo no detentor do poder executivo, revelam precisamente uma deriva autoritária que só em anteriores delírios de poder de tendência fascizante encontram paralelo.
É, aliás, extremamente curiosa a dualidade de critérios encontrada na argumentação de quem defende as acções de Maduro, levando a concluir duas coisas: 1) não há métodos errados, apenas agentes errados na aplicação desses métodos, censuráveis nas mãos de quem discordamos mas perfeitamente compreensíveis em quem apoiamos; 2) a nacionalidade enquanto valorização do indivíduo varia na exacta medida da sua proximidade a Maduro, sendo tanto mais lamentada a morte e afirmada a ascendência ‘bolivariana’ quanto mais próximo do líder se encontra, e tanto mais justificados os métodos e celebrada a morte quanto mais distante dessa liderança.
Em terceiro lugar, da mesma forma que um doppler avalia a natureza do movimento de um corpo celeste através da análise da influência que gera sobre o que o rodeia, também as acções de Maduro e dos interesses que representa são caracterizáveis pelos efeitos produzidos. Neste plano, tem de ser qualificada pelo que pratica, pelo que limita, pelo que condiciona e cerceia, e finalmente pelo que desvirtua de um Estado de Direito democrático uma liderança política que cauciona, decide ou contribui conscientemente:
- para o desaparecimento de meios de comunicação social politicamente não alinhados com a mundivisão do líder;
- para o desaparecimento da Constituição vigente – deitando por terra a herança Chavista cuja afirmação tantas vezes fora tão conveniente como estratégia de legitimação;
- para a substituição de um órgão de soberania (a Assembleia Nacional) tantas vezes elogiado até ao momento em que o seu controlo político foi perdido;
- pela utilização repressiva de força militar letal para condicionar o mesmo exercício de protesto anteriormente exaltado mas agora desconsiderado em função da mudança da posição crítica dos protestantes;
- pela detenção, humilhação ou suspensão arbitrárias dos direitos de vozes politicamente dissonantes;
- pelo recurso sistemático à convocação discursiva de uma ameaça externa como justificação para muito do que, de outra forma, seria considerado uma evidência de autoritarismo e condicionamento de direitos políticos e liberdades individuais.
E assim sendo, a defesa feita desta conduta pelo próprio e por quem o apoia, interna e internacionalmente, constitui um dos momentos mais vergonhosos da História recente, sobretudo por se afigurar uma repetição de erros cometidos no passado mas para cuja presença na memória colectiva não parece existir suficiente investimento presente ou, pior, carácter. Choca, em particular, que tantas e tantos prefiram subscrever a tese da defesa contra uma suposta invasão estrangeira quando o principal perigo para os seus ideais comanda já os seus destinos, decidindo já por todas e todos, e aprestando-se para fazê-lo mais ainda.
Quem opta, por necessidade, ingenuidade, ou falta de esperança, considerar democrata quem tão manifestamente lhe desrespeita os princípios presta-lhe um dos piores serviços: não é de subserviência, ódio fraterno fácil ou disponibilidade para a aleivosia que se faz o contributo para o progresso e a igualdade políticas, cívicas e sociais, mas sim de sentido (auto)crítico, honestidade intelectual e recusa da embriaguez do poder.