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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Ética do cuidado I

Maria do Céu Pires
Maria do Céu Pires
Doutorada em Filosofia. Professora.

No final do século XX e início do século XXI a investigação filosófica no campo da ética procurou encontrar novas abordagens que permitissem responder a alguns problemas colocados pelas teorias clássicas da justiça e da defesa do universalismo abstracto.

Sobretudo a partir da década de 80 e do trabalho de Carol Gilligan, publicado com o título In a diferente voice, surgem as chamadas éticas do cuidado. Estas foram algumas vezes interpretadas como éticas femininas. Mas, na verdade, não é essa a intenção de Gilligan. Para esta investigadora do desenvolvimento moral, o objectivo é encontrar outra forma de compreender as relações e o desenvolvimento humano e, a partir do reconhecimento da experiência das mulheres, chegar a uma outra noção de maturidade moral.

Trata-se de construir uma diferente perspectiva sobre a vida humana. Sobre este novo paradigma diz-nos:

“Para compreender como a tensão entre responsabilidades e direitos sustenta a dialéctica sobre o desenvolvimento humano é preciso integrar os diferentes modos da experiência que, de facto, estão conectados. Enquanto uma ética da justiça procede a partir da premissa da igualdade – pelo que todos deverão ser tratados da mesma forma – uma ética do cuidado parte da premissa da não-violência – e ninguém deve ficar de parte. Na representação da maturidade ambas as perspetivas convergem na perceção de que tal como a desigualdade afeta adversamente ambas as partes, numa relação desigual também a violência é destrutiva para todos os envolvidos.”.”[1]

C. Gilligan põe em causa os pressupostos de algumas teorias do desenvolvimento moral, nomeadamente as de Kolberg que, baseadas na reciprocidade e na autonomia, ignoram o carácter histórico e relacional de cada ser humano, e também o facto de os sujeitos se formarem nas inter-relações de dependência, desde logo as que ocorrem entre a criança e a figura cuidadora. Trata-se, para Gilligan, de questionar a concepção que faz equivaler a experiência masculina à experiência humana, mostrando que há uma voz que, apesar de silenciada, é também uma voz moral.

Tendo como ponto de partida os estudos empíricos que realizou, C. Gilligam, constata que as mulheres dão mais atenção às relações humanas e reconhecem mais as responsabilidades em relação aos outros, tendo uma maior percepção das suas necessidades. O modo de resolução dos conflitos também é diferente pois ninguém é excluído, sendo dada uma maior atenção ao contexto relacional onde cada um se encontra.

Muitas vezes se associou a ética do cuidado aos domínios da experiência humana conotados com uma maior fragilidade e se fez o paralelo com a situação das mulheres. Esta correspondência aconteceu porque se relacionou a vulnerabilidade apenas com determinados grupos considerados mais frágeis e vulneráveis, crianças, idosos, deficientes e, na sequência, a quem maioritariamente deles cuida: as mulheres. E, por essa razão, muitas vezes foi interpretada a ética do cuidado como se ela tivesse por referência exclusiva as áreas sociais e as profissões que mais se dedicam ao cuidado desses grupos. Será legítima esta equiparação?

Não me parece. O campo aberto pelo cuidado mostra que a vulnerabilidade não é apenas uma situação transitória que atinge determinadas pessoas, em determinados momentos da sua vida, mas deve ser entendida como modalidade da nossa relação com o mundo, como condição da existência humana: a que se refere à nossa capacidade de romper com a indiferença e de partilhar com os outros a dor e a alegria.

[1]GIlligan, Carol, In a diferente voice, Harvard University Press, London, 1982, p.174

Parte II a publicar em breve

As opiniões expressas nos artigos de Opinião apenas vinculam os respectivos autores.

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