Principais sucessos
Nos últimos dias de António Costa como primeiro-ministro, é justo reconhecer que alcançou um grande sucesso em levar as estruturas de governação da União Europeia a assumir a necessidade de lançamento, pós pandemia de COVID-19 de um grande programa de estímulo da economia que simultaneamente diminuísse a dependência de fornecedores de equipamentos cujo fabrico, por razões de embaratecimento, tinha sido “externalizado” para outros espaços. Lembram-se dos ventiladores? Levar uma Comissão Europeia presidida por uma alemã a criar uma “bazuca” financiada por empréstimos emitidos pela União, foi obra, mas tudo avançou e aqui estamos em pleno Programa de Recuperação e Resiliência.
No entanto – e Cavaco Silva, que no seu ensino sempre valorizou a existência de lags, alertou que tinha havido, a nível europeu, um desfasamento de dois anos(i) – o lançamento de concursos provou que a Europa (Portugal incluído) – arrancou com o Programa em plena crise inflacionista, que levou ao aumento do custo dos investimentos programados. Se é que o lançamento de um PRR tão concentrado temporalmente não funciona por si só como uma pressão inflacionista, mas a Comissão Europeia, talvez por estar pela primeira vez confrontada com a contração de empréstimos que terá de reembolsar em datas certas, não tem querido ouvir falar de uma dilatação da execução do Programa(ii).
Igualmente também se poderá dizer que no essencial a organização da Protecção Civil concebida por António Costa quando foi Ministro da Administração Interna foi testada, e funcionou, aquando dos seus tempos como primeiro-ministro, nas épocas de incêndios e na crise da pandemia. Melhor ficou quando “o caso das golas”, que seguiu para julgamento, obrigou a colocar Patrícia Gaspar, que já era para todo o país o rosto da Proteção Civil, como Secretária de Estado.
A política de elevação de salários mínimos foi importante e a tentativa de proteção do emprego e dos rendimentos nos tempos de pandemia, também me parece ter sido razoavelmente conseguida(iii). A Autoridade para as Condições de Trabalho e a Segurança Social responderam no essencial bem a questões complexas. Achei interessante que Ana Mendes Godinho, com o Governo já demitido, tenha tido coragem para concretizar o seu projecto de, através de cruzamento de dados, identificar casos de falsos recibos verdes nas empresas e pugnar pela sua correção(iv). Veremos se o próximo Governo irá sustentar esse esforço.
Dificuldades
Em todo o caso, convém também deixar registadas alguns aspectos em que a actuação de António Costa me parece ter sido fonte de dificuldades:
A ligação, pelo menos desde o exercício da Presidência da Câmara Municipal de Lisboa, a um modelo de prosperidade assente no imobiliário e no turismo, Vistos Gold, Economia e Imobiliário interligados e que aliás Fernando Medina chegou a recomendar fosse adoptado por outros municípios da Área Metropolitana de Lisboa. O próprio António Costa, veio nos jornais, chegou a comprar e a revender uma habitação na zona do Rato, sem qualquer problema. Luís Montenegro também veio a investir na habitação em Espinho, neste caso em sede de reabilitação. Fruto de toda esta dinâmica, houve quem tivesse de deixar de habitar na cidade onde morava e começou a falar-se de casas para a classe média… enfim, no deserto também surgem miragens. A equiparação do tratamento fiscal dos rendimentos prediais aos rendimentos de capitais reforçou a lógica de “financeirização”. A retirada de casas para alojamento local tornou mais difícil o acesso ao ensino superior e a aceitação de colocações por parte de professores e de outro pessoal qualificado. O anúncio das propostas do Mais Habitação veio aquecer os ânimos.
Não me admiraria que, interferindo com a zona menos transparente dos “interesses”, esta nova atenção aos problemas da habitação tivesse contribuído para abalar o apoio ao Partido Socialista, sobretudo no caso de Costa, visto apesar de tudo como garante do “sistema”, se retirar do jogo, como veio a retirar-se ou, se quisermos, a ser retirado. Veremos a orientação do novo Governo sobretudo quanto a aspectos simbólicos como o dos vistos Gold. Afinal de contas, Cavaco Silva escreveu “O novo programa inclui algumas medidas positivas óbvias – como é o fim dos ‘vistos Gold’”(v).
A atitude de António Costa em relação às reivindicações de grupos profissionais organizados nunca foi, como nos recordamos, propriamente conciliadora.
Publiquei em tempos no Jornal Tornado vários artigos sobre este tema, entre os quais “As greves de direita” e “As greves do quase desespero“.
Basicamente chamei a atenção para que membros de profissões que chegaram recentemente à aquisição de qualificações que lhes permitem exercê-las ou onde não existe tradição de acção colectiva, quando se envolvem num movimento reivindicativo, criam fortes expectativas quanto a uma rápida resolução. Não havendo unicidade sindical na lei, em alguns sectores de actividade ou grandes empresas, podem mesmo formar-se múltiplos sindicatos que reivindicam a representação de interesses específicos e vigiam as posições relativas dos seus representados em relação a outros.
O recurso à greve nestas situações costuma atrair sobre os seus protagonistas um chorrilho de acusações e atoardas: já ganhariam de mais ou trabalhariam de menos, para além de os seus objectivos serem “obviamente” de desestabilização política de órgãos democraticamente eleitos.
António Costa parece ter-se entusiasmado excessivamente com alguns combates anti-sindicatos em que se envolveu, e por vezes, como no caso da contagem de tempo de serviço dos professores, com a denúncia das “coligações negativas” ou do risco de o céu nos caísse em cima da cabeça, orçamentalmente falando. Numa vez pelo menos faltou à verdade, alegando que estava em causa o pagamento de retroactivos.
Todavia foi possível estabelecer com a magistratura um acordo que deu satisfação às reivindicações remuneratórias pendentes, e aí foi acusado de “comprar” os tribunais.
Foi “perseguido” durante os últimos tempos do seu Governo pela questão da contagem do tempo de serviço dos professores, pela inabilidade da sua Ministra da Justiça em construir carreiras satisfatórias para os funcionários judiciais e – aí só deve queixar-se de si próprio – por ter aumentado o subsídio de risco da Polícia Judiciária sem atender às outras forças de segurança.
Não me digam que foi perseguido pelas “corporações”, uma vez que o primeiro episódio desta natureza sucedeu quando era Presidente da Câmara e ocorreu a grande guerra do lixo.
A forma de regularização das situações de recibos verdes é o terceiro dos aspectos que considero questionáveis na actuação de António Costa.
Podem verificar em “O General Costa e a grande guerra do lixo” que na altura dei nota positiva à integração de pessoal a recibos verdes no Município de Lisboa muito embora questionasse a legalidade do expediente utilizado.
No entanto, chegado a Primeiro-Ministro fez pior, ao reeditar o expediente do Governo Guterres, que regularizou numerosas situações de recibos verdes herdadas de Cavaco Silva através da abertura de concursos uninominais a que só podia concorrer o interessado. Isto foi o resultado, creio, das negociações de Jorge Coelho com os sindicatos.
Como resultado destas negociações foi também aprovada – em 1998 – na Assembleia da República uma Lei que cominava a nulidade da contratação em regime de contratação de serviços para funções que devessem ser exercidas em regime de trabalho subordinado, sem prejuízo dos efeitos produzidos(vi). Ora António Costa, ao equacionar a regularização da situação de “falsos recibos verdes” poderia – e, a meu ver, deveria – ter utilizado os levantamentos de situação como indiciadores da existência de necessidades permanentes e abrir concurso para um número pelo menos igual de vagas, contando o tempo de serviço. O abrir concurso a que só poderia concorrer quem já estava lá, por a Constituição exigir que em regra, a admissão de funcionários se fizesse por concurso, tem um nome: fraude à Constituição.
Aliás os Governos de António Costa, preservando a ideia de escolha de dirigentes por concurso, cara a António Guterres, e a existência da CRESAP criada por Passos Coelho, ativeram-se à prática, também fraudulenta, de nomear primeiro em substituição aquele que querem venha a ser escolhido por concurso.
Convivialidade
Com as eleições de 2019 em que tanto o PS como o BE reforçaram as suas posições, terá aparecido como possível que o BE passasse a integrar o Governo, aliás já por um lado havia quem entre os dirigentes deste partido referisse que ele já contava com quadros preparados, que poderiam assumir responsabilidades, por outro os que tinham outro tipo de visão queixavam-se de restrições à democracia interna. António Costa deixou cair que não o atraía muito essa proximidade, e o BE deixou claro que passaria a rejeitar na generalidade as propostas de Orçamento do Estado.
Certamente o PS tinha albergado historicamente ex-“esquerdistas”, mas purificados por “travessias do deserto” individuais. Achei curiosa a reacção de António Costa, apesar da esfuziante simpatia pessoal que parecia ser seu apanágio. Enfim, Pedro Nuno Santos lá levou para adjunto especializado na TAP um ex-assessor de imprensa do BE, que veio a sobrar para João Galamba. No país vizinho o PSOE teve atitudes semelhantes e a esquerda no seu conjunto foi perdendo pontos, até que Sanchez foi aceitando coligar-se ou pelo menos negociar com um leque de forças cada vez maior.
As expectativas do BE ficaram frustradas na altura, e mais ainda com a maioria absoluta de 2022. Nas eleições de 10 de Março a sua campanha foi dirigida contra a maioria absoluta do PS. Nesse aspecto, saiu vitoriosa.
Em contrapartida, dentro do Partido Socialista António Costa pareceu sempre estar à vontade com as companhias, no entanto quando passou a recrutar governantes fora da base restrita dos militantes que tinha levado para as estruturas da Câmara Municipal de Lisboa, começaram a surgir “casos e casinhos”, até que para controlo de riscos foi necessário instituir um questionário. Até que ponto é que Costa conhecia as pessoas que propôs para integrar o Governo? E se as conhecia, será que as sabia avaliar? Lembremo-nos da situação em que se veio a encontrar por causa do seu “melhor amigo” e do chefe de gabinete que escolheu livremente.
Mesmo assim poderia ter continuado em funções e, creio, ter averbado novas vitórias eleitorais. Assim como Cavaco Silva poderia ter feito antes de ter entrado em “tabu” (e por que razão entrou?). Nisto de lideranças carismáticas, tudo se passa como se o “povo soberano” tenha de ser declarado liberto pelo líder a que se entregou antes de poder considerar novas escolhas.
Notas
(i) O Primeiro – Ministro e a Arte de Governar.
(ii) De qualquer forma a ideia de um “orçamento europeu” está a abrir caminho – já se fala em que também o investimento “militar” da União Europeia poderá vir a ser financiada por empréstimos colocados no mercado.
(iii) Não reparei que tivessem sido divulgados dados sobre o accionamento das garantias concedidas pelo Tesouro, Turismo de Portugal e IAPMEI a créditos bancários garantidos no âmbito da pandemia.
(iv) Só recentemente me apercebi que a ainda Ministra, que transitara de Secretária de Estado do Turismo era na origem inspectora do trabalho.
(v) Igualmente, O Primeiro – Ministro e a Arte de Governar.
(vi) Por exemplo, em termos de pagamento de remuneração e contagem de tempo de serviço.