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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

A falta de moral e a carência de ética

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Alexandre HonradoEscrevi – e repeti – como me interessava a ideia de que desconstruir a figura da chanceler alemã Ângela Merkel, num sentido intelectual da análise, equivalia à desconstrução da própria ideia do Calvinismo – prática e teoria herdada de João Calvino e que condicionou, nos últimos 500 anos, um modo de ver a religião, em especial a de matriz cristã, mas também a organização social e, assim sendo, o modo como se estrutura política e economicamente.

Entre outras zonas do mundo influenciadas pelo Calvinismo, a Alemanha herda muito dele, em particular, e do protestantismo, em geral. Essa herança contém ainda a forma como Calvino engrandeceu o ideal Protestante ao elaborar um imponente sistema de interpretação teológica, cuja mentalidade ética teria fornecido o elemento fundamental para o desenvolvimento do moderno capitalismo.

Tal afirmação suscita ardente debate que dura há séculos – e veio para ficar. Todavia, aceitando que nesse debate há consistência, pode conduzir-nos ao fim da lenda da supremacia dos países do Norte da Europa, à excelência da sua organização social (que teve no passado momentos históricos que nos afectaram tanto). É que essa lenda faz-nos viver em mais uma das muitas ficções da contemporaneidade – e afecta-nos profundamente, condicionando-nos opções de fundo.

Quando estes temas nos interessam, a primeira hesitação é como abordá-los. Se a religião anda presente, então, há três vertentes, pelo menos, a considerar: o que há na complexidade do que analisamos referente à teologia, à história e à filosofia.

Não podemos fazer um tratamento profundo nestas páginas, e optar por uma via de pensamento – qual o melhor? O teológico, o filosófico, o histórico? – deixar-nos-ia sempre aquém de todas a probabilidades e arredados de uma nomenclatura sustentável para cada ideia que defendêssemos.

Mas se olharmos para a Alemanha política de hoje e para o que a história vai revelando – uma economia frágil que quis mostrar ao mundo, como o sol e a peneira, que era forte; um dever à história pelo mal feito à história (a Alemanha tem dívidas enormes por pagar, pelo esforço de guerra, a economias que deslaçou, como a grega), um povo com uma hereditariedade dura aprisionado pelas suas próprias opções, um desejo de germano-centrismo numa Europa a exigir interculturalismo numa pluricultura cada vez mais intensa, uma interpretação do outro autocentrada, um aproveitamento das fragilidades dos países periféricos para relançar uma economia descontrolada (basta ver o embuste mundial da “ecológica” Volkswagen, sem ir mais longe nos detalhes), um poder central dividido entre figuras no mínimo autoritárias – Merkel e Schäuble que impõem ao Bundestag, ao parlamento federal, linhas de força que afectam os alemães, a Europa, e as relações do velho continente com o mundo, em nome de ideais arredados dos valores humanos e humanismo, valores tão valiosos que cultivamos há centenas de anos…

calvinist-reformed-church-910273_960_720Aliás, essa questão do humanismo acabou por separar dois amigos de ideias progressivamente diferentes, no início da história protestante: Erasmo, o teólogo sábio holandês; e Lutero, o pai revoltoso da Reforma. É que ainda hoje as duas formas de pensar o quotidiano são inconciliáveis: Erasmo defendia que a salvação humana era conquistada com a devoção privada, de maneira directa, sem intermediários. (A Igreja, na sua visão, precisava reduzir a teologia ao mínimo, de modo a simplificar a fé e a salvação. Os crentes poderiam ou não aceitar as definições oficiais dos teólogos, usando o próprio discernimento para solucionar as dúvidas).

Erasmo defendia uma reforma moral, pura e simples; para Martinho Lutero, uma reforma moral da Igreja era importante, mas não podia parar por aí; só faria sentido se ocorresse dentro de um contexto de mudança institucional e correcções drásticas na doutrina. Não se tratava de simplificar simplesmente a doutrina mas sim de corrigi-la – o que significava mais doutrinas, nunca menos.

Hoje, desconstruir Ângela Merkel é desconstruir o Calvinismo que está no núcleo da sua cultura pessoal e nacional. Isso equivale a dizer que é sobre a moral e a ética que devemos fazer incidir os focos, para vir a perceber o que se passa connosco e como somos afectados por protagonistas que aparentemente deviam ser-nos alheios.

É a falta de moral e a carência de ética do poder que nos enchem de apreensões.

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