“… a ausência é a morte
É a morte mais tristemente
É a morte mais devagar”
(Vinícius de Moraes, poeta, morto aos 67 anos, em 1980)
Uma noite gelada com neblina, uma rua arborizada, um apartamento de cobertura e uma xícara de café em boa hora. Não esperava tanto do meu anfitrião e entrevistado, o jornalista e escritor José Castello. Vinícius de Moraes, alvo da conversa, teria apreciado nossa cumplicidade e os atalhos literários que desviavam nossa atenção de suas intrigas amorosas. Para escrever a biografia “O Poeta da paixão”, Castello mergulhou fundo na vida afetiva de Vinícius. E, a julgar só pela aparência, amar e separar, para o poeta, foi tão fácil quanto inevitável. No fragmentado romance que foi sua vida, as dores, talvez tão desejáveis quanto os amores, é que tingiram o enredo das cores mais belas.
Castello escolheu buscar o outro lado da saga romântica de Vinícius, entrevistando suas mulheres. Que tal ser tão amada e, de repente, esquecida e deixada para trás com todas as lembranças? No adeus irrevogável, ao que parece, pode-se encontrar uma saída eficiente na fantasia: quase todas as ex-mulheres de Vinícius sobreviveram acreditando terem sido o seu “grande amor”. Num envolvimento em que ambos os lados mitificam e endeusam, a verdade dos fatos torna-se irrecuperável. Se cada uma sentiu-se amada como única, certamente assim foi.
Poemas, encontros inesperados, presentes, pequenas atenções, delicadezas, músicas, viagens…o poeta oferecia o mundo à eleita, que aportava na irrealidade sem levar na bagagem um pingo de juízo. E aí é que está a graça de tudo, aí é que está o segredo da paixão. Cercado da aura de artista genial e boêmio, Vinícius pôde ter a seus pés todas as mulheres do mundo. Quem resistiria? No final da vida, meninas com um terço da sua idade o amavam mortas de ciúme, como se ele, apesar do peso dos anos, dos vícios, da instabilidade financeira e afetiva , ainda fosse mais cobiçável que elas no apogeu da mocidade.
“Ser mulher do Vinícius e achar isso normal é impossível”
(José Castello, 50 anos, jornalista e escritor)
Doutor nas artimanhas do coração, a ponto de “passar receita” para viver um grande amor, Vinícius de Moraes também amargou difíceis separações. Corajoso, era sempre ele que dava início ao relacionamento, lançando-se de cabeça na paixão. Cabia a ele também encerrar o caso, convencido de que se enganara e que a mulher a seu lado não era “aquela”, a amante idealizada, que o motivava desde a adolescência. Desencantado, ainda assim retomava a eterna e impossível busca da musa, num exercício de fé inabalável.
Apesar de não ter deixado para a posteridade um antídoto para sua antológica receita de como viver um grande amor, Vinícius desenvolveu, com a experiência, um método próprio para enfrentar a perda, um passo-a-passo infalível que adotou a cada separação. Bebia muito, namorava muito, ia a todas as festas e precocemente se entregava à angústia de uma nova escolha, procurando identificar entre as mulheres próximas aquela que melhor encarnasse seu ideal de perfeição.
Dizia que o uísque era o “cão engarrafado”, o melhor amigo do homem, e era no ombro amável da bebida que se apoiava nas horas sombrias. Também recorria aos versos. Quando escrevia para exorcizar mágoas, não se preocupava com a carpintaria poética, tudo o que desejava era desabafar, refugiar-se da dor, acompanhar-se dos versos enquanto atravessava a solidão.
Para não ser traído pelas lembranças e regredir no esquecimento, o poeta abria mão de todos os bens quando deixava o falido casamento. Partia levando apenas a escova de dentes, curioso objeto mítico, despojado, que simbolizava um provisório e frágil vínculo com o relacionamento desfeito. Não agia assim apenas por desapego, mas principalmente pela necessidade de apagar o passado sem deixar vestígios e poder recomeçar do zero.
Completo o ritual de purificação, o homem indigno outra vez sagrava-se cavalheiro e podia ser da sua dama por inteiro, dama que habitava a sua imaginação, e que, de tempos em tempos, se revelava em carne e osso, numa desafiadora mulher que o poeta se dispunha a seguir até o fim do mundo.
“Uma mulher me olha, em seu olhar há tanto enlevo
Tanta promessa de amor, tanto carinho para dar
Eu me ponho a soluçar por dentro, meu rosto está seco
Ai que medo de amar!”
(De Vinícius de Moraes para Lucinha Proença)
Muita gente se separa quando avista o amor verdadeiro. Por medo, o medo de sofrer se tudo acabar. Para José Castello, uma única mulher rompeu com a dinâmica amorosa do poeta e ameaçou sua segurança emocional, a socialite Lucinha Proença. Ela equilibrou a relação, olhando-o como a um igual, um homem e não um mito. Com isso, o jogo ficou perigoso. Vinícius previu a chegada do amor, diminuindo o fogo da paixão, que ele tanto prezava, e inaugurando laços afetivos difíceis de romper. Por isso foi embora.
Viveu inúmeras recaídas dessa paixão, procurando, em vão, a ex-mulher, que não o recebeu de volta por acreditar que um recomeço não teria a intensidade da primeira vez. Foi Lucinha que inspirou a célebre receita “para viver um grande amor”.
O mundo das sombras do espírito não tem segredos para mim”
“Meu marido é feio e ainda assim eu o amo.” Com essa declaração, a expert em assuntos do coração, Helenice, tentou consolar um homem complexado com a aparência.
Helenice foi o pseudônimo que Vinícius de Moraes adotou quando assumiu uma seção de consultoria sentimental no “Flan”, sofisticado semanário editado pelo grupo Última Hora, de Samuel Wainer. Vinícius estava precisando de dinheiro, por isso procurou um emprego com o amigo.
No dia 12 de abril de 1953, o jornalista diletante estreou na função, apresentando-se aos leitores: “Eu venho também de grandes sofrimentos e amarguras. O mundo das sombras do espírito e das doenças da alma não tem segredos para mim.”
O tom parecia sincero, mas os amigos, que conheciam a verdadeira identidade do autor do desabafo, acharam que aquilo era pura ironia. Será? A verdade é que Vinícius lutou para manter viva uma imagem poética, sedutora, de homem galante, seguro, feliz, e pagou um preço caro por isso. Divertiu-se muito, mas, à medida que envelhecia, cada vez mais precisava do “cão engarrafado” para compor seu personagem. A perspectiva de encontrar a musa, que o moveu em cada dia da charmosa existência, tornou-se insatisfatória no final. Ou porque ele descobriu que a musa não existia de verdade, ou porque cansou, ou porque, num último esforço de poeta, identificou-a romanticamente com a morte: uma dama gélida, misteriosa e atraente.
Na sua breve carreira de conselheiro sentimental, Vinícius assinou respostas secas, sarcásticas e maliciosas, a ponto de o diretor da publicação, Joel Silveira, argumentar que a seção não devia mais se chamar “abra seu coração”, e, sim, “abra suas pernas”.
Vinícius foi substituído por Nelson Rodrigues, o que não deve ter aliviado a carga erótica dos conselhos, mas a troca serviu para devolver Vinícius ao papel que mais apreciava: o de “bon vivant”. Ele partiu para uma temporada em Paris, esquecido de Helenice e de seus conselhos extravagantes, afinal, de que servem os conselhos na vida de um homem que prefere sentir primeiro e pensar depois?
A autora escreve em Português do Brasil