Fátima e Montalegre, tão longe e tão perto. Separados uns 300 quilómetros no mapa terrestre; geminados na radiografia do espírito, justapostas as raízes profundas dos lugares. Modos diversos, unos na essência, de ler o suprassensível. Unidas por um dia, aos olhos das crenças primordiais e do imaginário maravilhoso que resistem na aridez do preto-branco quotidiano: o 13 de Maio.
Dois locais que a história cultural distingue: Fátima, filha da vetusta Lusitânia de matriz indo-europeia, irrigada pelo Islão heterodoxo e a saudade da filha do profeta; Montalegre, sob o manto granítico do deus celta Larouco, depois romanizado, – dizem os galegos – com um templo a Júpiter no seu topo, feito lugar de comunicação com as divindades celestes.
A proposta singularidade que une Fátima a Montalegre começou este ano pelo dia 13 de Maio, no capricho de uma Sexta-feira, marcada pelos augúrios, pretexto para milenares evocações míticas e supersticiosas.
Treze são os convivas da Última Ceia, os “espíritos do mal” assinalados pela Kabala judaica e o número do capítulo do Apocalipse que fala do Anticristo e da Besta.
Excêntrico, o número 13 é cifra a que o simbolismo atribui uma função de incessante recomeço: o perpétuo rochedo que Sísifo transporta montanha acima…
Num dia 13 de Maio, uma “mulherzinha” – na descrição original de Lúcia dos Santos – tentaria comunicar com habitantes deste planeta, a partir de uma azinheira, ou seja a quercus ilex, na taxonomia latina, da família das fagáceas.
A sua parente quercus rotundifólia – ou seja, o nosso familiar carvalho – é por seu lado um dos eixos dos rituais celtas que se exprimem em Montalegre por obra e graça do heterodoxo padre Fontes, sacerdote católico temporariamente travestido de druida: da Gália à Irlanda ancestrais, a força e a sabedoria eram argumentos desses respeitados sacerdotes, em funções distintas, de sacrificadores a adivinhos.
Em terras transmontanas, o druida substitui a bruxa ou feiticeira invocadora de poderes mágicos, de energias criadoras da mulher, em contracorrente com a norma. Olhada de soslaio pelo cristianismo vencedor como encarnação de Satanás, a celebração de Montalegre atualiza o ressurgente culto Wicca, religião neopagã assente no dualismo físico e espiritual masculino-feminino, em interação com os ciclos da natureza.
No que concerne ao carvalho, seja na cultura celta como na grega antiga, ele representa o “eixo do mundo”. Era junto de um carvalho que Abraão recebia as revelações de Javé ou Jeová e sobre a azinheira na dolina de Fátima descia a “mulherzinha” que falava como se fosse um “enxame de abelhas”.
Assumem ambos uma função axial de instrumento de comunicação entre o Céu e a Terra: veja-se o grande carvalho de Zeus e a sua folhagem consultada por Ulisses na Odisseia e recorde-se Plínio para quem, etimologicamente, os druidas são “os homens do carvalho”.
O mesmo sentido simbólico acha-se na oliveira e nas tradições cristãs: esta “árvore da vida e da manifestação divina, em ascensão para o céu” reencontra o celtismo revisitado no âmago da religiosidade pagã.
Mas o elo maior deste amplexo transmontano-estremenho é o culto feminino da Deusa-Mãe ou Grande-Deusa.
Na sociedade celta, sem ser matriarcal, ainda assim a mulher era soberana no domínio das forças da natureza. Muito antes da Maria Virgem de Fátima, as culturas mediterrânicas trouxeram até nós Cibele, a Mãe dos Deuses, culto asiático da Frígia vitorioso na Roma Imperial.
Deusa criadora das sociedades agrárias, identificada com os ritos de fecundidade, ela surge, sem surpresa, assente sobre a inevitável “árvore da vida”.
Outras divindades como Isis, a grande divindade egípcia, mãe de Hórus, Deméter, a Ceres romana, Artemis, irmã de Apolo, são avatares do “eterno feminino”, o principal vector da religiosidade popular portuguesa, inscrito no culto a Maria Mãe do catolicismo que simboliza hoje a grande corrente renovada pelas culturas desde tempos imemoriais.
Nada de novo sob o Sol.