“Tive que lutar no meu país para reconhecer o direito ao aborto, não porque eu esteja a favor do aborto, mas porque há mulheres que abortam, gostem ou não, e as condenadas são as mais pobres”, disse José Mujica sobre a descriminalização do aborto no Uruguai, implementada em 2014. Para o ex-presidente e actual senador, as feministas não podem esquecer que a maior das lutas ainda é a de classes porque, apesar dos avanços contra o machismo, as mulheres pobres seguem sendo as mais subjugadas.
Em passagem pelo Brasil, Mujica foi questionado durante uma palestra na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) sobre a importância do aumento do movimento de mulheres no país. O ex-presidente não titubeou ao afirmar que o fortalecimento da luta feminista é fundamental para combater o machismo e diminuir a desigualdade de género, mas fez um alerta:
esta agenda de direitos tão justos pode esconder a grande agenda que é a diferença de classes”
Para Mujica, tão importante quanto defender a igualdade de géneros é não vacilar diante da luta de classes e pontuou que, mesmo dentro da luta feminista, esta deve ser a questão mais importante porque as mulheres pobres são as que mais sofrem.
Se há algo desamparado no mundo são as mulheres pobres, sobretudo as mães solteiras. Creio que a agenda de reivindicações das mulheres não pode se esquecer disso em primeiro plano” Afirmou.
Desde que o aborto foi descriminalizado no seu país, em 2014, já houve mudanças importantes em relação a este tema. A maioria das mulheres que buscam atendimento é pobre e 18% delas têm menos de 20 anos. Com o controlo da saúde pública, no entanto, o número de desistências do procedimento aumentou 30%. Isso porque, mulheres que antes estariam desamparadas, encontram assistência e aporte necessário para esclarecer todas as dúvidas sobre a maternidade. Se ainda assim quiserem interromper a gravidez, têm a certeza de que o farão com segurança.
Mujica afirmou que a situação das mulheres pobres foi um elemento-chave para o debate sobre o aborto porque as mais abastadas têm outros meios de interromper uma gravidez indesejada mesmo com as proibições impostas pelo Estado. Para o senador, este é só um dos aspectos que provam o quanto o feminismo segue sendo uma luta de classes acima de tudo. “A diferença maior ainda é a de classe porque a mulher mais submetida é a mais pobre. As ricas sempre têm como solucionar seus problemas” disse.
No livro Mulheres, Raça e Classe a filósofa norte-americana Angela Davis alerta sobre esta mesma questão e aprofundou a complexidade da vida das mulheres negras e pobres. Na obra, ela critica movimentos feministas liderados por mulheres brancas que não são capazes de compreender as diversas realidades e diferenças do universo feminino.
Embora tenham colaborado de forma inestimável para a campanha anti-esclavagista, as mulheres brancas quase nunca conseguiam compreender a complexidade da situação da mulher escrava. As mulheres negras eram mulheres de facto, mas suas vivências durante a escravidão — trabalho pesado ao lado de seus companheiros, igualdade no interior da família, resistência, açoitamento e estupros — encorajavam-nas a desenvolver certos traços de personalidade que as diferenciavam da maioria das mulheres brancas” lê-se num trecho do livro.
Davis aprofunda a questão ao afirmar que muitos problemas enfrentados pelas mulheres brancas, como o machismo dentro do casamento, por exemplo, estão longe de ser uma questão para as negras que precisaram resistir aos estupros dos patrões brancos, às péssimas condições de trabalho e à violência da sociedade.
Neste sentido, Mujica destacou a importância do movimento feminista, mas pediu para as mulheres não descuidarem “a maior de todas as agendas: a luta de classes”. “A agenda de luta feminista não pode nunca esquecer dos direitos das mulheres pobres e abandonadas porque são as que mais frequentemente têm que aguentar as crueldades do mundo”.
Por Mariana Serafini | Texto original em português do Brasil
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