Numa luxuosa cópia nova, Fellini 8 1/2 cumpriu o seu regular desígnio de agregar em seu redor tanto aqueles que procuram descobrir novas arestas do sonho de um realizador que convida a fantasia para se inspirar, bem como aqueles que descobrem pela primeira vez este clássico de 1963.
É que no final dificilmente seremos os mesmos, como avisava Gianfranco Angelucci, um escritor, realizador e argumentista, estudioso de Fellini (ele que participou no guião de Entrevista, o penúltimo filme de Fellini, em 1987), na detalhada e esclarecedora introdução que precedeu a apresentação na sala cheia do UCI El Corte Inglés, pela primeira vez associado à Festa, diante do impacto que cada um terá diante deste filme singular.
Como se cada um de nós retirasse elementos para compor o nosso filme de vida, impregnado de imaginação neste glorioso desfile ou carrousel de personagens. Porque, como sentencia o guião de Federico Fellini, a vida é uma festa. Vamos vivê-la em conjunto.
Nesta revisão do filme que elegi como figurando no meu top 3, não tive problemas em descobrir as tais novas arestas, desde logo porque estava avisado por Angelucci em descobrir e desfrutar o tal branco, mais branco que o branco (mais puros até do que os puros negros), que nos ajuda a penetrar no tal sonho permanente.
Por outro lado, permitiu-me ainda chegar à conclusão de que 8 1/2 será mais do que um filme sobre um realizador em crise de inspiração, numa assumida ponte com o próprio Fellini. Prefiro encará-lo como uma celebração da dúvida e da incerteza, da vivência do sonho, das memórias e recordações, pois serão elas mesmas a seiva da imaginação e inspiração.
Até porque nada em 8 1/2 parece feito ao acaso. Basta seguir as deambulações da câmara, bailando ao som das melodias de Nino Rota, pelas termas onde percebemos que Sorrentino se inspirou (ou superou a falta de imaginação) para o apoucado Juventude, mas também nas recordações da infância e das curvas exuberantes de Saraghina a perturbar em ritmo rumba a imaginação da infância, a austeridade seca dos sacerdotes, e sempre as mulheres.
E aí temos Mastroianni em grande, ainda que num registo que poderá não superar o de La Dolce Vita, embora aqui num filme superior, o tal que viria a ganhar o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro nesse ano, seria essa a terceira vez, depois de vencer em dois anos seguidos, com La Strada e Noites de Cabiria, respectivamente em 1956 e 57 (viria a ganhar outro, mais tarde, em 1974, com Amarcord).
Marcello é irrepreensível na hesitação, entre a amante (Sandra Milo) e a mulher (Anouk Aimee), porque tinha necessidade de ambas, ou ainda a sua mulher de sonho, Claudia (Claudia Cardinale), tal como a actriz à procura de uma personagem, bem como todas as outras, a bailarina veterana, a mãe, todas reunidas numa das sequências mais marcantes do filme, juntas na casa para a celebração do seu ego.
Num filme que celebra a sua arte, mas também a alegria de viver o sonho, desfilam parte das inquietações do próprio Fellini, desde a inquietação dos produtores, do supervisor do guião, dos agentes das estrelas, bem como a memória da família.
Por isso, a sequência final diante da tal ‘nave espacial’ é talvez das mais belas sequências do mestre italiano, onde se celebra esse caleidoscópio de memórias e emoções. Que no fundo move o cinema. E a nós.
Razão pela qual é difícil de superar Fellini e, este filme, em particular. Se bem que a maior parte dos realizadores não tenha grandes problemas existenciais em superar o seu último filme. Assim tenha um orçamento maior e actores mais conhecidos.