Emaranhado com o que a humanidade projetava como futuro, o século 21 nos surpreendeu trazendo o reposicionamento de uma extrema direita tão radical quanto caricata. Uma direita reaça que já deveria estar morta e enterrada, mas que ressurge como corpos tragados pelas ondas e devolvidos pelo mar.
A pandemia do retrocesso precedeu a do coronavírus. Brexit, Donald Trump, a ascensão da direita na Europa e Bolsonaro, são pontos que se ligam nesta surpresa indesejável. Surpresa porque isso não aparecia no radar da grande maioria de analistas para os quais a direita no pós Guerra Fria eram os defensores do neoliberalismo. Neonazistas, negacionistas e apoiadores da ditadura e da tortura eram vistos como nichos excêntricos, quase desprezíveis.
Mas a história não é matemática e o imprevisto é certo. Tivemos um início de milênio marcado pela crise migratória entre África, Oriente Médio e Europa, pela crise econômica de 2008 e pela explosão das redes sociais que bagunçou a habitual lógica política.
No Brasil ainda não conseguimos equacionar as manifestações de junho de 2013. De lá para cá tudo mudou. Antigas análises já não servem mais e o repertório de respostas prontas teve seu prazo de validade vencido.
Em 2016 a eleição de um ganancioso descarado e grosseiro para a presidência dos EUA chocou quem tinha um mínimo de discernimento e civilidade. A derrota de Trump parecia certa, mas a crise econômica, o desemprego, a manipulação de dados de redes sociais, as Fake News e o “empoderamento” de grupos radicais, antes amortecidos pelas mediações dos tradicionais meios de comunicação, tornou real o que parecia improvável.
Não menos assustador foi a eleição de Jair Bolsonaro dois anos depois. Aquela eleição traduziu o que foi 2013 no Brasil. Se alguém em 2018 ainda tinha dúvida se aquele foi um movimento dominada pela direita ou pela esquerda, a dúvida acabou com o advento do bolsonarismo.
Crise econômica, xenofobia, manipulação, golpes políticos, descaramento, mentiras em série, isso tudo voltou nas ondas da segunda década do milênio. São muitos aspectos de uma realidade nova e inusitada. Vamos por partes.
22 de Julho
No dia 22 de julho de 2011, na Noruega, o extremista de direita, Anders Behring Breivik publicou na internet um manifesto onde expressou seu radicalismo conservador e se autoproclamou “Cavaleiro Templário da Noruega”.
Naquele mesmo dia ele matou 69 jovens do Partido Trabalhista Norueguês na ilha de Utøya e 8 pedestres em Oslo. Ao ser pego, confirmou todas as acusações e após as tramitações da denúncia recebeu com ar de sarcasmo a condenação a 21 anos de prisão. Esta história está retratada no filme 22 de Julho, do diretor Paul Greengrass, lançado em 2018. Ela mostra a xenofobia como gatilho para outros desvios de caráter e que começou não só a voltar a crescer na Europa, como também a conferir um sentimento de confiança a seus adeptos. Talvez Anders fizesse isso em qualquer época, mas é seguro dizer que ele, e outros como ele, encontraram nas facilidades e na falta de filtros da internet uma forma de se expressarem e de se ligarem.
Junho
Dois anos depois do atentado na Noruega, as facilidades de comunicação e agitação nas redes sociais insuflaram no Brasil manifestações nunca antes vistas. E o documentário Junho, de João Wainer, lançado em 2014, é, na minha opinião, o melhor registro daquele mês de 2013.
A luta pelo passe livre, a repressão desproporcional da polícia militar, a reação popular frente a violência policial, o descontrole do movimento, os Black Blocs tomando conta, está tudo ali, desde a legítima luta social até a ascensão de uma direita agressiva contra a presidente Dilma Rousseff. O filme mostra essa reviravolta capitalizada pela Fiesp que impulsionou a demagogia barata e interesseira que, como sabemos, pautou a Lava Jato nos anos seguintes.
Democracia em Vertigem
Lançado em 2019, Democracia em Vertigem, de Petra Costa, também passa por junho de 2013, mas vai mais fundo, oferecendo um panorama bem elaborado da política nacional.
Um panorama que vem de lá da construção de Brasília, passando pela ditadura militar, redemocratização, pela injustificada queda do governo de Dilma Rousseff, até a emergência de um assustador Jair Bolsonaro. Petra mostrou a efervescência dos governos PT e a melancolia contrastante após a queda daquele projeto de desenvolvimento. O filme claramente tem um lado, mas não poupa a esquerda, expondo também os erros que ajudaram na tomada de poder de Michel Temer. Como material a diretora contou não apenas com as manifestações de 2013, mas com registros únicos de Lula e Dilma, imagens históricas e acontecimentos pitorescos como a votação do impeachment na Câmara dos deputados naquele domingo, 17 de abril de 2016, que constrangeu o Brasil.
Get me Roger Stone
O ano de 2016 foi, de fato, trágico. Se por aqui tivemos que lidar com a retirada de direitos e de proteção social promovida por Temer, os EUA deu o seu pior para si e para o mundo elegendo o empresário reaça e fanfarrão Donal Trump ao cargo político mais cobiçado de todos.
Ainda é cedo para dimensionar a extensão do desastre, mas sugiro aqui um filme que pelo menos mostra o descaramento do ambiente e das companhias que impulsionaram Trump em sua aventura de bilionário mimado. Refiro-me ao documentário Get me Roger Stone, de Dylan Bank, Daniel Di Mauro e Morgan Pehme, lançado, em 2017. O filme mostra o estilo de vida e o pensamento do consultor político conservador Roger Stone, um homem que tem o rosto de Richard Nixon tatuado nas costas e que pensou antes de todos que Trump poderia ser o presidente dos Estados Unidos da América. Como filme é uma produção caprichada. Como realidade, seria cômico se não fosse trágico.
Privacidade Hackeada
Aliás, trágicas foram as manobras da empresa Cambridge Analytica, que fez campanhas pelo Brexit, no Reino Unido, e por Donald Trump, nos EUA, com base na “guerra da informação”.
Eles compraram e usaram dados pessoais disponibilizados no Facebook de cada eleitor. O filme mostra que a empresa escolhia como alvos, eleitores que não tinham opinião política formada e os enchiam de mensagens que orientavam decidir pelos candidatos deles. No fim a Cambridge Analytica teve que responder pelo uso ilegal de dados do Facebook de pelo menos 87 milhões de pessoas em uma tramoia que beneficiou até a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. A empresa de Mark Zuckerberg também teve que dar explicações, o que não me espanta. Há anos o jornalista Julian Assange tenta alertar a humanidade para as perigosas consequências políticas dos monopólios das Big Techs na comunicação. E por isso ele tem sido criminalizado. Sinal dos tempos…
Rede do ódio 2020
E, como mostrou Rede do ódio, filme do polonês Jan Komasa, de 2020, a manipulação política na internet vai muito além do uso de dados pessoais. A disseminação em série de notícias falsas em campanhas é outro golpe baixo para ganhar derrotar adversários e ganhar eleições.
A filme vale por mostrar que no século 21 a produção de “fake news” se tornou uma verdadeira indústria, algo importante já que tivemos uma eleição, em 2018, que se beneficiou amplamente da desinformação e já que isso ainda é uma praga disseminada por todos os celulares e telas não só no Brasil.
Vale também por caracterizar dois perfis que se sobressaem no contexto que estamos tratando: um segmento do campo progressista (limitado, porém influente) que é endinheirado, se acha antenado e prima pela arrogância, e um tipo reprimido conservador que engole essa arrogância, se ressente e digere ódio.
Triste é saber que o lançamento de Rede do ódio precisou ser adiado porque dias depois de terminada as filmagens, o prefeito da cidade polonesa Gdansk, Pawel Adamowicz, um político progressista e defensor dos direitos LGBT, foi esfaqueado e morto em um evento filantrópico com centenas de pessoas. Ele era alvo de extremistas nas redes sociais e o crime morbidamente tornou o filme ainda mais realista.
Filmes que nos ajudam a ler a realidade
Lançados entre 2014 e 2020, os filmes 22 de julho, Junho, Democracia em Vertigem, Get me Roger Stone, Privacidade Hackeada e Rede do ódio compõe um material interessante que nos ajuda a entender a atualidade. São filmes que tratam precisamente de situações políticas ocorridas nos últimos dez anos. E isso é assustador já que no conjunto eles destilam ódio, conspiração e, sobretudo, expressam repúdio aos direitos humanos e resistência aos avanços civilizatórios.
Quatro dos seis filmes citados passam por problemas criados com a explosão e o descontrole da internet e das redes sociais. Não se trata aqui de maldizer a tecnologia e os novos meios de comunicação que são grandes inovações. Mas sim de refletir sobre como esses avanços são usados, monopolizados e distribuídos.
Trata-se também de observar como o mundo se expressa através dessas novas possibilidades. Um mundo abalado pela crise econômica de 2008, no bojo do acirramento das contradições entre geração de riqueza e de desigualdade. Porque se a internet é o mensageiro a mensagem está inscrita na lógica do salve-se quem puder que cresceu desde a quebra do banco Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008.
Desregulamentação do trabalho, desemprego, marginalização, aumento da miséria e da violência são enfim, a argamassa que sustenta os discursos reacionários salvacionistas que nos assombram em pleno século 21.
Se o que temos do século 21 fosse um filme ele seria marcado por uma grande reviravolta. Sem final feliz, por enquanto.
Texto em português do Brasil