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Terça-feira, Julho 16, 2024

Fórmulas de política internacional para jovens geniais

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A avó tinha ficado apreensiva com a possibilidade de receber uma carta sobre o seu arrendamento. Não estava abrangida pela lei, mas muita gente recebeu cartas. O pai tinha sido condenado a prisão perpétua pela PIDE. Metafórico mas Álvaro Cunhal tinha dito o mesmo de si próprio. Matérias há em que existem ainda maiores riscos de más interpretações, e em que convém compor fórmulas e usá-las repetidamente. Por exemplo que se é a favor da autodeterminação da Palestina como se é a favor da autodeterminação da Ucrânia. Estou a falar obviamente de Mortágua (Mariana). Que a propósito do início da guerra de Gaza também deixou claro que é reprovável, quem quer que seja, atacar civis.  No Esquerda.Net numa época em que se publicavam muitos artigos de autores estrangeiros um destes referia-se à possível autodeterminação de Taiwan.

O início do processo de autodeterminação da Ucrânia é muito antigo, deve-se ao estado maior imperial alemão e ao Governo de Guilherme II que impuseram a independência no Tratado de Brest-Litovsk, posterior à Revolução de Outubro. Alguns nacionalistas da altura, como o autor de progroms Petliura, hoje em dia incensado, não conseguiram contudo controlar duradouramente o território. Seguiu-se a Constituição da União Soviética em 1922 que instituindo um novo patamar, nas palavras de Lenine, dotou a Ucrânia do carácter de participante de uma união voluntária de Repúblicas, com direito de secessão, contra os que a queriam tornar uma república dentro da República Federativa Russa. De novo do lado alemão, temos os esforços de Stefan Bandera e dos alistados nas tropas SS, como o nonagenário fofinho Hlinka homenageado há meses no parlamento canadiano, mas em contrapartida do lado soviético a exigência de Estaline em Ialta de que as Repúblicas da União fossem todas membros de pleno direito da ONU com direito de voto na Assembleia Geral, só se tendo obtido acordo nos casos da Ucrânia e da Bielorússia(i). Em 1957, já Kruschev primeiro-secretário do partido comunista ucraniano, se tornara líder do partido comunista da URSS, são transferidas da União para as Repúblicas numerosas empresas. Em 1991 Boris Ieltsin, presidente da República Federativa Socialista Soviética da Rússia, propõe aos seus homológos da Ucrânia (Kravchuk) e da Bielorússia, que aceitam, a dissolução da URSS. Um referendo na Ucrânia confirma esta aceitação, a autodeterminação é uma questão encerrada. A única autodeterminação que se coloca é, vinte anos depois, a das províncias orientais de Lugansk e Donetsk, de que por exemplo a República Popular da China é crítica, como não aceitaria a de Taiwan e nem quis considerar a do Tibete, e de que a generalidade dos estados constituídos é igualmente crítica, por terem reivindicações de autodeterminação dentro do seu território, mesmo que não tenham um vizinho poderoso disposto a apoiá-las. Vejam-se os casos do Kurdistão, cuja população está repartida pela Turquia, Síria, Iraque e Irão, e da Catalunha.

A questão da autodeterminação da Palestina coloca-se igualmente desde o fim da I Guerra Mundial em que os britânicos com a ajuda dos árabes do Hedjaz expulsaram os turcos e os seus aliados alemães. Relendo outro dia a biografia de Churchill, Ministro das Colónias na altura, fico impressionado pelas descrições de como este, declarando-se sionista, impulsionou a emigração de judeus para a Palestina, apesar das manifestações dos residentes árabes e dos próprios pedidos do governador britânico, aliás de origem israelita, para suster o processo. Já tinha lido o que Benoist-Méchin(ii) escrevera sobre a hostilidade para com os britânicos durante a II Guerra Mundial  nos países do Médio Oriente e sobre um encontro de Roosevelt com Ibn Séoud, rei da recém criada Arábia Saudita, em Fevereiro de 1945, a bordo do cruzador Quincy no Mar Vermelho, que correu bem no que se referiu à colaboração futura no domínio da extracção de petróleo mas em que o rei se opôs terminantemente ao pedido do americano quanto a um bom acolhimento à imigração israelita para a Palestina.

É conhecida a tragédia de 1948 e a expulsão de 750 mil palestinianos, por força da acção de terroristas israelitas como o célebre Menachem Begin, antecessor de Netanyahu no Likud, de locais que vieram a ficar integrados no Estado de Israel tendo eles e os seus descendentes constituído uma diáspora de dimensões apreciáveis, ficando muitos deles a cargo do apoio de uma agência da ONU. Outros continuaram a viver dentro do Estado de Israel sendo-lhes reconhecido o direito de voto (os chamados árabes israelitas). Em 1967 na Guerra dos Seis Dias Israel passa a controlar a Cisjordânia e o território até ao Sinai. Um segundo conflito levou o Egipto a recuperar posições. Não sendo fácil manter um estado de guerra permanente com as populações, os Acordos de Oslo apontam para uma solução de dois estados que teria início com a criação de uma Autoridade Palestiana, que internacionalmente foi pedindo o estatuto de observador ou a abertura de escritórios, que controlaria dois territórios não contíguos – a Cisjordãnia e Gaza, apontando-se para que Jerusalém oriental fosse a futura capital de um Estado palestiniano. Porém o movimento Hamas, na origem apoiado pelo Estado de Israel, conseguiu assumir o controlo de Gaza, de onde Israel retirou os seus colonatos, enquanto os tenta alargar na Cisjordânia, onde tem procurado dificultar movimentos através da construção de muros.

Existe de há muito a ideia de que pode haver uma situação colonial num território que não é controlado formalmente por outro país, sendo o exemplo clássico o da África do Sul do tempo do apartheid, e vai-se formando a perceção de que o Estado de Israel pode estar, nos anos mais recentes, a evoluir nesse sentido. Afinal a faixa de Gaza e a Cisjordânia estão a desempenhar uma função própria dos antigos Bantustões sul-africanos. Entretanto o grupo dominante, integrado por israelitas de muitas origens e padrões culturais, mantém ligações a muitas comunidades em países de origem e beneficia de uma certo sentimento de responsabilidade do “ocidente” por esta sua (não formalmente) colónia. Neste contexto, surge a reactivação da solução dos dois Estados, que deixou de interessar aparentemente a o Estado de Israel, e que coloca pelo menos o problema da viabilidade do novo Estado, do desmantelamento dos colonatos implantados no seu território, e da permissão do regresso dos membros da diáspora palestiniana, que Israel logo desde o início declarou não aceitar. Autodeterminação da Palestina corresponde a reconhecer o Estado da Palestina? Não apenas.

Os desastres da guerra, de Valentim Alexandre

Quanto a ataques a civis, temos o ataque de 7 de Outubro de 2023 em larga escala aos kibutz israelitas perto da faixa de Gaza, que em rigor não são na sua totalidade ataques a civis, uma vez que estas unidades, em grande parte instaladas antes da criação do Estado de Israel, estavam em teoria defendidos por soldados ou milicianos, que foram em muitos casos mortos ou capturados, apesar de, soube-se depois, os serviços secretos israelitas terem informação antecipada sobre a existência do plano de ataque. Claro que temos relatos de homicídios e agressões sexuais após os kibutz atacados terem ficado sob controlo – e até dos infelizes que haviam comparecido num festival de dança – e que não foram poupados jovens objectores de consciência ao serviço militar e gente que tentava ajudar no dia a dia os palestinianos de Gaza. A acção foi lançada em resposta aos ataques do estado israelita e colonos judeus contra os palestinianos na Cisjordânia – e disse-se também, contra a aproximação entre alguns países árabes e Israel(iii) – e foi protagonizada também por civis, pois em rigor os 40 mil milicianos alistados no Hamas por convicção ou necessidade material não são militares e muito menos o são a generalidade dos palestinianos que têm vindo a ser massacrados desde aí em Gaza e na Cisjordãnia. Foi intencional, e correspondeu a instruções recebidas dos comandantes destes milicianos (uns e outros eles próprios abatidos nos dias seguintes), a morte e a agressão sexual a não combatentes, numa estratégia de lançamento do terror?

Recordemo-nos de outra situação colonial que nos tocou de perto, localizada no Norte de Angola em Fevereiro e Março de 1961, fazendo apelo (quem as tem) às nossas recordações, à biografia política do Cónego Manuel das Neves, de José Manuel Silveira Lopes, e ao recentemente publicado Os desastres da guerra – Portugal e as revoltas em Angola – Janeiro a Abril de 1961, de Valentim Alexandre. As prisões em massa de activistas pró-independência em Luanda e o boato de que seriam deportados para Portugal determinaram a organização de um grupo – de civis – que, com vista à sua libertação atacaram em 4 de Fevereiro esquadras e outros locais de detenção (e um carro da PSP em circulação), sem conseguirem libertar ninguém. No dia seguinte dão-se incidentes no funeral de sete “agentes da ordem” mortos a 4(iv) e um conjunto brancos – civis – armados vai vingar os seus patrícios (de forças de segurança) caídos através de uma batida (a civis) aos musseques de Luanda.

(Parlamento)

Em 15 de Março, dia em que Holden Roberto, líder da UPNA – União dos Povos do Norte de Angola/UPA – União dos Povos de Angola, depois FNLA, iria discursar na ONU, numerosas fazendas de produtores de café – civis – no Norte de Angola são atacadas por populares – civis – enquadrados pela UPA. Apesar de mal armados, conseguem neutralizar na maioria dos casos a resistência dos atacados, que são mortos, num total que nunca foi estabelecido com certeza, mas que segundo algumas das fontes mencionadas por Valentim Alexandre terá atingido cerca de 800 brancos e também numerosos trabalhadores bailundos (não eram do Norte de Angola …) verificando-se também a ocorrência de agressões sexuais. Lembro-me de Venâncio Deslandes, mais tarde Governador-Geral, ter falado a um jornal de “raparigas estudantas (sic) que estavam a passar férias com a família, violadas e os seios cortados(v). Em Portugal (e noutros países “ocidentais” que se apressaram a cortar fundos aos refugiados palestinianos), as tentativas mal-sucedidas de colonização deixaram reminiscências na memória colectiva e não me admiraria que Mariana Mortágua venha a tomar consciência disso.

As circunstâncias são diferentes das actuais na Palestina mas pelo menos Portugal veio a medir o sucesso dos seus esforços de reposição da ordem pela “apresentação” de populações às suas tropas. A PIDE matou gente envolvida no 4 de fevereiro, mas veja-se a Informação nº 27/61 – S.R, de 12 de Abril de 1961, de Aníbal São José Lopes sobre a prisão do Cónego Manuel das Neves, vigário-geral da arquidiocese de Luanda, reproduzida por Silveira Lopes:

Há quem exprima a opinião de que a prisão  do Cónego foi um “acto impolítico”, porquanto só se deveria ter neutralizado a sua acção, uma vez que, dada a ordem dos acontecimentos, o Cónego MANUEL DAS NEVES seria um dos meios de contacto com a U.P.A. a fim de “se poder chegar a um acordo”.

Contudo Manuel das Neves, deportado para Lisboa e que acabaria por falecer em Portugal, teria, segundo Silveira Lopes, sido apologista de que o levantamento que veio a ter lugar em 15 de Março de 1961 fosse uma forma inequívoca de exigência da independência. Terá pressentido os contornos que veio a assumir? A pergunta é aqui paralela à que se pode formular em relação à espectacular acção do Hamas em 7 de Outubro de 2023.

Que isto não é um terreno em que direita e esquerda se devessem confundir mostra a disposição de Spínola, voluntário em Angola quando os acontecimentos rebentaram, para quando Presidente da República em 1974, se relacionar prioritariamente com a FNLA e o envolvimento de um conjunto de mercenários portugueses da sua área política para acompanhar a marcha sobre Luanda das tropas zairenses e da FNLA quando a independência foi finalmente declarada em 1975.

Alerta a Mariana Mortágua: o Hamas não é de esquerda.

 

Notas

(i) O que Franco Nogueira critica no seu Salazar Vol IV, pag. 73, por serem “simples republicas federadas da União” e não “Estados independentes e soberanos.”

(ii) Sobre este autor ler o meu artigo “De Attaturk a Erdogan”, publicado em 14 de Junho de 2023.

(iii) Designadamente a Arábia Saudita, que, anote-se, havia anunciado também a designação de representantes permanentes junto da Autoridade Palestiniana.

(iv) De natureza não completamente elucidada nos relatos. Oito anos depois alguém me referiu que durante o funeral estavam “uns pretos sentados no muro do cemitério, a rir”.

(v) E houve casos de tomada de reféns, pelo menos durante o percurso  em que os atacantes retiravam para o actual Zaire.

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