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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

Freud: o conflito entre indivíduo e sociedade

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

“Freud parte da ideia de que há um conflito insolúvel entre o indivíduo e a sociedade, ideia central em sua compreensão da psicologia humana e também da história. “

Talvez a versão mais influente para demonstrar que o comportamento humano seria invariável e inalterável – e, portanto, a-histórico – seja aquela baseada nas ideias de outro grande cientista, Sigmund Freud, cujo pensamento inspirou uma das principais formas que vê a história e a vida social como respostas a impulsos psíquicos que seriam naturais. Com isso contribuiu para a visão conservadora que preconiza o imobilismo de uma história que ocorre à margem da ação concreta dos homens e de sua atividade prática.

Freud parte da ideia de que há um conflito insolúvel entre o indivíduo e a sociedade, ideia central em sua compreensão da psicologia humana e também da história. É uma concepção mais sofisticada do que aquelas baseadas na biologia – e na genética – que predominaram antes e ainda conta com muitos adeptos, chegando a formar uma assim chamada “ciência”, a sociobiologia.

Freud inovou ao afastar as ideias religiosas e místicas do estudo da mente. Suas pesquisas foram revolucionárias e provocaram grande controvérsia. Mas seu fundamento ideológico está contido nos limites do pensamento burguês centrado no indivíduo e seu suposto conflito com a sociedade – ideologia que já estava presente no pensamento de Kant, que preconizou igual conflito entre o indivíduo e  sociedade como importante fator para explicar a vida entre os homens. Conflito que também aparece na expressão “mão invisível do mercado”, usada por Adam Smith para expor a ideia de que ao lutar por seus interesses individuais, ao cuidar apenas de seus objetivos particulares, o indivíduo realiza tarefas que resultariam no bem estar e na felicidade de todos, como já foi visto em capítulo anterior.

Esta ideia da luta de todos contra todos, e entre dos indivíduos e a sociedade, é a formulação filosoficamente mais acabada do individualismo burguês. Freud deu a ela uma base psicológica muito forte ao trazê-la para o centro de sua explicação da mente – e da história. Mas com limitações. A visão freudiana de uma mente onde há a luta entre sujeito e objeto, base do conflito entre indivíduo e sociedade, o impediu de aceitar a unidade básica que há no psiquismo humano, unidade demonstrada na mesma época pelo pensador marxista Lev Vygotsky e sua equipe, a partir de indicações feitas por Friedrich Engels muitos anos antes no ensaio “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem“, de 1876. Os pesquisadores reunidos em torno de Vygotsky trabalharam pela fundação de uma psicologia científica, materialista e dialética.

A visão de uma mente cindida impediu que Freud pudesse reconhecer o caráter histórico-social do desenvolvimento psicofisiológico dos seres humanos, e a ligação entre este desenvolvimento e a atividade prática (o trabalho) do homem. Desenvolvimento contraditório que, como Karl Marx e Friedrich Engels haviam notado, e Vygotsky aprofundou depois, gera a percepção, pela mente humana, do mundo cindido entre sujeito (a própria mente  humana que percebe o mundo objetivo) e objeto (tudo aquilo que está fora da mente: o mundo material e os outros homens). Isto é, na alma humana se manifesta a divisão entre sujeito (o eu, o ego), que estaria em contradição com aquilo que ele percebe do mundo como algo externo e oposto a ele (o mundo objetivo, a natureza, e os outros homens e a sociedade).

Ao acatar essa divisão, Freud foi levado a uma visão mistificada do inconsciente como esfera inata e imutável, que existiria à margem e fora da experiência prática e histórica. E que ele encarou como resultado de impulsos inatos, que existiriam na alma, prontos e acabados desde o nascimento e, na espécie humana desde os tempos mais remotos. Impulsos que seriam inatos, gerados por alguma força sobrenatural (embora Freud não formule dessa maneira), mais própria de uma crença mística, religiosa e que, portanto, depende da fé e não da demonstração científica.

Freud, é preciso reconhecer, notou esta contradição e ao longo de sua vida de cientista tentou compreende-la mais profundamente. Passou de sua descrição inicial dessa tendência que considerou inata e batizou de princípio do prazer e princípio de morte, e depois deu a elas nomes usando os termos gregos Eros e Tanatos (amor e morte) – mas nunca pôde perceber que o problema não era o nome usado mas a base filosófica da qual partia, que preconizava a visão cindida do espírito humano e o conflito entre os chamados impulsos inatos do indivíduo e as imposições de seu desenvolvimento, que somente são atendidas através do contato com os demais seres humanos, com os quais Freud supôs haver um conflito irremediável.

Freud estendeu para o estudo da sociedade e da história as ideias que desenvolveu para a análise da mente. Sua atividade analítica ocorreu no período em que a burguesia, como classe, impôs suas ideias como se fossem as ideias de todos. Situação de hegemonia ideológica que se acentuou na época mais avançada do capitalismo, a época do imperialismo.

  • Engels, Friedrich. “Dialética da Natureza”. São Paulo, Paz e Terra, 1979.
  • Engels, Friedrich. “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”. In “Dialética da natureza”. Lisboa, Presença, 1974.
  • Freud, Sigmund. “Obras Completas”. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1989.
  • Vygotsky, Lev. “La psique, la conciencia; el inconsciente“. In “Obras Escogidas” Tomo I, Moscou, 1930.
  • Vygotsky, L. S. “A formação social da mente”. São Paulo, Editora Martins Fontes, 1988.

Texto em português do Brasil



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