Em pleno centro de Fronteira, a dois passos da imponente Igreja Matriz mandada construir por D. Sebastião em 1571, aquele velho casarão de dois pisos da rua da Lagoa sempre teve localização privilegiada para o negócio que os meus avós maternos nele montaram no começo do século passado: “Pensão Central – quartos e refeições”, conforme informava a tabuleta – hoje desaparecida – pendurada na fachada.
Eu e as minhas duas irmãs – a Cândida e a Anabela – morávamos com os pais e os avós paternos no começo da rua de São Miguel, junto aos Correios, já no início do declive que desce para a ribeira. No entanto, muitas vezes, atravessando o adro, íamos comer à Pensão, onde a avó Antónia sempre tinha alguma coisa apetitosa preparada para nos dar. Tanto bastou para que logo fossemos crismados: “Olha, lá vão os austríacos…” – diziam com sarcasmo, comparando-nos aos jovens refugiados da segunda guerra que haviam sido acolhidos por algumas das famílias mais ricas da vila. Ninguém escapa, no Alentejo, à vox populi…
Na inocência desprevenida da nossa primeira infância, esses comentários não nos afetavam minimamente – para a minha mãe era um alívio poder de vez em quando folgar de fazer comida e para a minha avó uma satisfação ter os netos reunidos debaixo da sua asa.
Apesar dessas regulares deslocações gastronómicas, os primeiros anos ainda os passei em grande parte na casa dos meus pais. Aí dormia, aí tomava as refeições principais, daí ia para a escola e aí fazia os deveres. Era também daí que no Verão partíamos – eu, as minhas irmãs e o meu pai – em fila indiana, a pé, para a ribeira – cada um com uma velha câmara de ar preta a servir de boia enfiada no braço ou pendurada do pescoço – e aí regressávamos, cansados, depois do banho, ao fim do dia, com fiadas de amoras silvestres para comer ou fazer licor.
À noite, depois do jantar, o meu pai tocava guitarra ou banjo, conforme a disposição; depois, sentávamo-nos na sala em torno do rádio de válvulas Loewe, de olho verde a piscar na mudança de sintonia, ouvindo um “Serão para Trabalhadores” da Emissora Nacional com locução de Pedro Moutinho e Maria Leonor. Em alternativa, colocávamos um vinil Odeon ou His Master’s Voice no prato do gira-discos com agulha de aço e 78 rotações por minuto; tinha um pouco de tudo: de Maria de Lourdes Resende (Quem passa por Alcobaça…) a Luís Piçarra (Canção do Alentejo) e Tomás Alcaide (O amor é cego e vê), passando pela música brasileira: “E lá para as tantas quando a coisa esquenta…”
Data dessa época um episódio que quase custou o emprego ao meu pai e é bem revelador de uma certa irreverência que julgo dele ter herdado. Como era moda nessa altura, chegado o Verão, o Dr. Porto, conservador do Registo Predial, partiu com a família de férias para um período balnear na Figueira da Foz, ficando o escritório entregue ao ajudante Manuel Fino. E este, um dia que saiu mais cedo, resolveu dar uma explicação a quem chegasse e deparasse com a repartição encerrada ainda dentro do horário oficial. Dizia o escrito que, como Lutero na porta da igreja, pregou na entrada resumindo o seu credo: “Conservador na Figueira / Ajudante na ribeira”…
Entretanto, depois da quarta classe e superada uma crise de papeira seguida de meningite em que estive às portas da morte, salvo in extremis por mão amiga que enviou de Londres à pressa o remédio inexistente em Portugal – passei a viver praticamente o tempo todo na rua da Lagoa. A justificativa era de ordem prática – o colégio Rainha Santa ficava muito mais perto da Pensão, bastando subir a travessa em frente; mas a razão profunda era outra – a paixão da D. Antónia pelo neto mais velho – agora ainda mais reforçada depois do perigo de vida em que me encontrara – que fez de mim um menino privilegiado, o menino de sua avó.
Maior devoção a minha avó só dedicava ao Menino Jesus, de quem tinha uma pequena estatueta vestida de cetim branco em nicho alto no seu quarto junto à qual sempre bruxuleava a chama de uma estearina acesa boiando em copo de água com dois dedos de azeite.
A Pensão Central foi, portanto, o cenário – intermitente primeiro, constante depois – de praticamente toda a minha infância.
Ali já vivera, ainda muito miúdo, momentos de grande perigo como aqueles em que, ainda gatinhando e iludindo a vigilância dos adultos, venci um a um os degraus da escadaria do quintal que dava acesso aos quartos ficando depois agarrado, em pânico instintivo, lá em cima, com risco de cair da altura de uns quatro metros… Tão em pânico e tão agarrado, que ninguém conseguia soltar-me os dedos dos ferros da varanda, numa cena que me ficaria para sempre gravada na memória. Ali vivenciei depois, ao longo de anos, intensas situações que haveriam de formar a minha personalidade e evoco agora como quadros marcantes do meu aprendizado alentejano.
No quintal, subia a medo, em prodígios de equilíbrio, à oliveira centenária cujos ramos se erguiam para além do muro da travessa. Nas manhãs frias de inverno, brincava com o “caramelo” – aquela fina camada de gelo que à noite se formava na superfície do tanque de lavar roupa. Foi também lá que descobri, maravilhado, as pérolas das gotas de orvalho reluzindo ao despontar dos raios solares sobre as ervas dos canteiros e me iniciei no sabor dos frutos colhidos diretamente da árvore ainda sem quaisquer agrotóxicos – os pêssegos, os marmelos, as uvas, as romãs, as laranjas e até os limões do tamanho de seios cuja acidez desafiava à dentada.
Na cavalariça, conheci o cheiro acre do gado muar e uma vez por outra descobri inesperadas ninhadas de gatos de várias cores… andei por entre os porcos na pocilga, recolhi ovos do galinheiro e assisti um dia, atónito, pela vez primeira, ao milagre da vida, vendo irromper os pintos, amarelos como o Sol, furando a casca… Foi ainda no quintal da Pensão que, também pela primeira vez, vi com espanto e pena a morte ocorrer quando o meu avô agarrou um borrego e sem dó nem piedade lhe cravou uma faca na jugular, segurando-o depois enquanto durava o estertor e o sangue escorria para um alguidar.
Quando os relâmpagos rasgavam céus fantasmagóricos e rebentavam trovões apocalípticos, era no quartinho térreo do quintal que me estava destinado que eu corria a refugiar-me enfiando a cabeça debaixo do travesseiro; se fosse à noite e a tempestade se prolongasse, por vezes não aguentava sozinho e ia então, tremendo de frio e medo, bater à porta do quarto ao lado, onde dormiam as criadas – a Fernanda e a Constança – que me recolhiam e sossegavam, abrindo espaço entre elas na cama estreita já quente do calor dos seus corpos.
Mas se o quintal foi importante por todas essas descobertas e vivências, o interior da Pensão não o foi menos. Nas horas mortas do dia, subia ao andar de cima e por lá fazia excursões exploratórias entrando nos quartos vazios – um deles, interior e mais escuro, reservado à guarda da roupa e dos utensílios da limpeza, era particularmente misterioso com as suas arcas e armários nos quais temia existirem fantasmas escondidos; no maior, que dava para a rua principal, havia um piano desafinado do qual sempre extraía notas soltas de um improvisada sinfonia imaginária.
Mais importante que isso, entretanto, era a cozinha, cá em baixo, com a sua lareira de enorme chaminé e uma mesa de pedra comprida ao longo de todo o espaço, onde – patrões de um lado, empregadas do outro – se tomavam as refeições. A que mais apreciava era o pequeno almoço, com café de saco coado na hora acompanhando pedacinhos de toucinho frito ou pão com manteiga que retirávamos de uma lata grande dos Açores… Por vezes, tinha também brunhol – termo arcaico de origem obscura usado na vila para designar a massa frita das farturas, passada por açúcar e canela, que eu próprio ia comprar à esquina da Igreja da Misericórdia em dia de mercado.
Ali na cozinha assistia à faina incessante da minha avó e das criadas em torno do fogão a lenha – como se fossem técnicas de um laboratório de alquimista – transformando galinhas, coelhos, peixes, perdizes e peças de carne em iguarias para servir na sala de jantar aos hóspedes e fregueses da Pensão, entre os quais se contavam, diariamente, os motoristas e cobradores da carreira da Setubalense, que ali almoçavam ao meio-dia antes de continuar viagem.
As galinhas eram depenadas à mão em cima daquela mesa, depois de escaldadas com água a ferver num grande alguidar; e os coelhos – que caçadores vinham vender junto com perdizes batendo à janela da cozinha que dá para a travessa – eram dependurados de um prego na chaminé e aí esfolados e esventrados entre intenso cheiro de entranhas até deles restar apenas a cabeça e a carne limpa, prontos a ir para a panela depois de temperados.
Nas horas de menos movimento, a cozinha era também a igreja de que eu era o sacerdote oficiante: copiando o padre Baleiras, que via na matriz aos domingos todo paramentado, colocava um avental branco das criadas pelas costas, subia na minha cadeirinha de estopa pintada de vermelho e ali mesmo, em tempos de seca prolongada, imitando o latim da missa, pedia aos deuses que enviassem chuva para as favas do meu avô.
Logo que aprendi a ler e escrever – pouco depois dos quatro anos – em aulas na casa da severa Maria Albina, ao fundo da Rua dos Trigueiros – era também junto à janela da cozinha que me entretinha a ver os livros de banda desenhada – primeiro o Mundo de Aventuras, depois o Condor Popular – que todas as semanas ia comprar, com moedas surripiadas da caixinha dos trocos da minha avó, à papelaria do Perninha, junto à praça de taxis.
Além das feiras anuais (São Pedro, em junho – São Miguel, em setembro e de Nossa Senhora da Vila Velha – padroeira de Fronteira, em meados de agosto) o ano era marcado pelas festividades de cada estação, todas devidamente assinaladas ali na cozinha, cada uma com os seus pratos próprios – o borrego na Páscoa, o porco depois da matança, já entrado o Outono, em seguida o bacalhau e o perú, no Natal – todas sempre com muitos bolos e doces à mistura: argolas, costas, azevias, bolo enrolado, bolo podre, broas de milho, filhoses, nógado, arroz doce, pudim, rebuçados de ovos, farófias… Era então que em torno daquela mesa comprida se reunia toda a família para a ceia – incluindo o ramo de Cabeço de Vide – e, à hora anunciada, num grande alvoroço, as crianças – eu, as minhas irmãs, os meus primos Luís e João e quem mais houvesse – íamos esconder-nos para depois regressarmos e recolhermos, maravilhados, as prendas deixadas na chaminé pelo Pai Natal.
Em contraste com esta abundância, descobri um dia, para meu espanto e tristeza, que a pobreza morava ao lado. Quando o Chico – rapaz da minha idade com quem brincava – adoeceu com uma infeção aguda nos ouvidos, eu e a minha avó entrámos na casinha dele, do outro lado da travessa, para ver se podíamos ajudar nalguma coisa. Fiquei chocado com o que vi e nunca mais me esqueci: piso de terra batida, panela de ferro em lume de chão, telha levantada a servir de chaminé e quase total ausência de móveis – apenas uma mesinha baixa para refeições e uma arca de pinho. Tudo num espaço pequeno em que o “quarto” com a cama de ferro era simplesmente o que ficava para além de umas sacas de batatas cosidas entre si e depois caiadas para ficarem rijas e dependuradas a servir de “reposteiro”.
Por aquela travessa abaixo ia muitas vezes a casa da minha tia Cândida, que eu adorava. Foi numa dessas idas que deparei a certa altura, junto a um portão, com um intrigante corvo preto quase do meu tamanho. Nunca tinha visto pássaro igual e, sem ninguém por perto, só muito devagar consegui passar, com medo de ser atacado. Maior que o medo foi entretanto o espanto quando logo a seguir ouvi uma voz nas minhas costas perguntar: “Olá, como vai?”. Voltei-me de repente para ver quem seria, mas como no poema de Poe, agoirento, só lá estava o corvo, ave que até aí desconhecia que pudesse falar.
Ainda não tinha oito anos, foi também lá da Pensão que – de calção e sandálias – corri alvoraçado até ao adro para assistir, num fim de tarde de setembro, em 1956, à primeira emissão experimental da RTP: imagens tremidas a preto e branco deslizando com dificuldade e ainda sem sincronia afinada na tela de uma caixinha montada em cima de um camião, deixando meio confusa a pequena multidão ali reunida, ainda intrigada com a possibilidade de estar a ver ao vivo alguma coisa que se passava a muitos quilómetros de distância.
Antes da febre da televisão começar, o grande espetáculo era a sétima arte, que o Cinema Araújo promovia de vila em vila, incluindo ali em Fronteira. Pequenos cartazes com diagramas do próximo filme eram colocados em pontos estratégicos – normalmente no Coreto e nos cafés mais centrais – a anunciar o que aí vinha. A projeção acontecia dias depois, sempre a céu aberto: seja no antigo ringue, lá no fim da rua da Lagoa, seja no terraço do Atlético, na Boavista. Entre os títulos que ficaram famosos estavam “O Direito de Nascer”, de 1952 e “La Violetera”, de 1958. Um certo número de bilhetes tinha que ser vendido para rentabilizar os custos de exibição e por isso não havia horas muitas fixas para começar: quando o público rareava, o Araújo fazia girar o mesmo disco infinitas vezes antes de apagar as luzes, tentando desesperadamente atrair mais gente. Foi assim que, já sentado no meu lugar, lá em cima, no terraço do Atlético, devo ter ouvido o António Prieto cantar umas dez vezes La Novia antes de começar o Ben-Hur…
Havia também o circo, durante as feiras e, uma vez por outra, apareciam grupos famélicos de saltimbancos que por uns míseros cobres e até comida atuavam na lateral da igreja matriz com malabarismos vários, atravessando arcos em fogo ou caminhando sobre brasas… Espaçadamente, ainda por ali apareciam na esquina da Pensão alguns invisuais – herdeiros remotos dos antigos trovadores – que por uns trocos deixados cair na caixinha preta das moedas que traziam ao peito dedilhavam na guitarra o acompanhamento musical à descrição cantada que faziam de grandes dramas e tragédias efetivamente ocorridos; os mais equipados, no fim, ainda vendiam umas folhas em que vinham impressas as estórias sempre tristes que relatavam – espécie de literatura de cordel – verdadeiros antecedentes do jornal do crime.
A tudo isso eu podia assistir porque o regime da avó Antónia, na Pensão, com horários mais flexíveis, era muito mais liberal do que em minha casa…
Foi igualmente na Pensão Central que vivi o despertar da líbido. Primeiro, de forma confusa, ainda muito criança, quando uma jovem vizinha da minha idade com quem por vezes brincava, entrou sem avisar na casa de banho do quintal onde eu estava e para meu absoluto espanto levantou a sainha, mostrando-me o sexo impúbere. Encostei-me a ela e abracei-a por instinto e logo saímos os dois sem entendermos bem o que tinha acontecido… Mais tarde, já adolescente e ciente do que se passava, comecei a lançar olhares furtivos pela fisga da porta empenada do meu quarto quando alguma empregada mais jovem subia ou descia a escadaria do quintal… Tudo pecados que me pesavam na consciência e confessava depois ao padre Baleiras para limpar a alma e poder comungar na missa de domingo recebendo a hóstia consagrada.
A tudo isso, que já seria muito, juntava-se ainda a conversa com os hóspedes, que no ir e vir dos quartos, embora tivessem entrada autónoma, sempre preferiam atravessar a cozinha para dois dedos de conversa com a minha avó.
Aquele espaço funcionava assim como um palco atravessado por diferentes personagens e intérpretes, cada um com os seus problemas, a sua fala própria, o seu destino: o circunspecto e reservado juiz; o exaltado funcionário público da Oposição, que vinha de Benavila aos fins de semana, sempre com “A República” debaixo do braço e invocando a seu favor qualquer recente declaração do Papa; os caçadores que entravam e saíam de roldão; o general de pingalim que por lá passou em tempo de manobras da NATO, sempre vociferando qualquer coisa com o seu ajudante de campo atrás; as esbeltas funcionárias dos Correios, que pareciam saídas de um livro do Vilhena e traziam os homens da vila babados e de queixo caído; o triste professor primário, autor de livros escolares que lhe enchiam o quarto e acabou por se suicidar cortando os pulsos, ali mesmo na Pensão; e ainda, de quando em vez, o Sr. Santos, o ourives que chegava de bicicleta e nas horas mortas abria a sua maleta prodigiosa dela retirando mostruários de veludo azul em que brilhavam anéis, broches, colares, cordões de ouro e libras esterlinas com a efígie da rainha… com os quais encantava irremediavelmente as mulheres, delas recolhendo – a longas prestações a pagar nas próximas vindas – as magras poupanças locais.
A essas vivências de interiores juntavam-se depois as que experimentava fora de casa e com as primeiras se entrelaçavam, acabando por marcar toda a minha infância ali no coração do Alto Alentejo.
A porta de entrada do Café da Pensão funcionava para mim como ponto de transição entre esses dois mundos: passava tempos infinitos sentado no degrau, ainda de chucha pendurada ao pescoço, vendo o mundo passar. Se aparecia alguém conhecido, atirava rapidamente a chucha para trás das costas para evitar a crítica que me faziam de já não ter idade para aquilo… Foi lá que muitas vezes assisti, no final do dia, ao regresso à vila dos ranchos de mulheres que vinham da monda, da ceifa ou da apanha da azeitona em jornadas de Sol a Sol, mal alimentadas e esgotadas, mas a cantar;
Ainda muito jovem – lá pelos seis anitos – inaugurei, se assim se pode dizer, a minha vida artística com declamação de poesia nos intervalos da peça que o grupo amador da vila – de que os meus pais faziam parte – levava à cena na Casa do Povo: “Falar verdade a mentir”, de Almeida Garret. A direção dos ensaios estava a cargo do mestre Zacarias, alfaiate de vastos bigodes republicanos com casa montada na Rua dos Trigueiros, junto ao Colégio; os meus ensaios privados, esses, claro, decorriam na Pensão, tendo por público os meus avós e as criadas;
Na galeria da minha memória de Fronteira estão também, em lugar de destaque:
- os imaginários e disputadíssimos dérbis Benfica-Sporting, que – ainda com bola de trapos – disputava, jogando à extrema esquerda, no largo da Boavista, em frente à Escola Primária, primeiro, e – anos depois – no campo de futebol, junto às ruínas da Igreja do Espírito Santo, paredes meias com o cemitério;
- as procissões em honra de Nossa Senhora, durante as Festas da vila, toda engalanada, durante as quais, ainda criança, desfilava de vela acesa na mão e asas brancas de anjinho;
- mais tarde, já na puberdade, as procissões do Senhor dos Passos, à noite, em que cheguei a bater matracas vestido com uma opa roxa da Misericórdia, ouvindo depois, de coração apertado e lágrima ao canto do olho, no largo da Câmara, entre a multidão, junto ao pelourinho, o sermão pungente do padre proferido do alto da varanda do Carita – o latoeiro local – sublinhando toda a dor do dramático encontro da Virgem com o Filho a caminho do cadafalso…
- noutro plano, igualmente marcantes, foram os bailes de Carnaval da Artística – a sociedade recreativa dos senhores agrários, lojistas, funcionários públicos e equiparados da vila – com os seus concursos de máscaras e fantasias, onde um tio meu sempre fazia grande sucesso todo vestido de diabo vermelho… e, mais democráticos, os bailes do Atlético – o clube popular da vila, com a sua equipa de futebol – onde uma vez por outra me chegaram a levar as empregadas da Pensão;
- sem esquecer a pequena tertúlia que se reunia à porta da Farmácia Namorado, junto ao Coreto, para comentar os assuntos do dia. Foi lá que certa vez o lavrador Costa Pinto, de uma das grandes casas senhoriais de Fronteira, salazarista ferrenho, e o funcionário público Bernardino, que não escondia ser do contra, se travaram de razões numa disputa acalorada que chegou a vias de facto.
Era o despontar de outra era, que começara lá atrás, em meados dos anos 50, quando da greve dos assalariados rurais alentejanos pelas oito horas de trabalho – dispersos ali em Fronteira pela GNR a cavalo vinda de Portalegre, à frente da qual ainda corri para me refugiar em casa – e se prolongou depois, já nos anos 60, com a crescente resistência às guerras coloniais.
As inspeções para a tropa – a que se chamava “tirar as sortes” – deixaram então de ser um simples pretexto para festa e confraternização entre jovens da mesma idade, espécie de rito de passagem da adolescência para a idade adulta, para adquirirem cada vez mais, a partir de 1961, uma tonalidade de apreensão pelo que poderiam significar – a mobilização para a guerra em África.
Aliás, esse ano – o annus horribilis do salazarismo – começara com o sequestro do paquete Santa Maria, logo em janeiro, e terminaria com o assalto ao quartel de Beja, na noite de 31 de dezembro – assistindo ainda a uma sucessão de acontecimentos que abalaram profundamente o regime: início da luta armada em Angola, em fevereiro; desvio de um avião da TAP de Casablanca para Lisboa, em novembro; anexação pela força dos territórios de Goa, Damão e Diu pelas tropas da União Indiana em meados de dezembro – tudo acabando, de uma forma ou de outra, por ter repercussão ali na vila.
Quando do episódio da Índia, por exemplo, lembro-me bem de estar a seguir pela rádio o relato dos acontecimentos lá na Sociedade Artística. Enquanto o Artur Agostinho clamava que “Os sinos de Goa, Damão e Diu serão sempre portugueses”, a notícia de que a guarnição lusitana não oferecera resistência causou naquela pequena tertúlia de agrários e funcionários do regime, apreensão e tristeza. Sorumbático, o velho Menezes, chefe das Finanças, resumiu: “Não temos quem nos defenda… Não temos quem nos defenda…”
Esse não era, porém, o sentimento lá de casa: nem dos meus pais nem dos meus avós. Informado e bastante lido – na biblioteca do seu escritório havia um pouco de tudo: de Salgari a Dumas, de Verne a Zola, passando por Dostoivsky, além dos clássicos portugueses – Herculano, Camilo, Eça, Garret, entre outros – o meu pai cultivava o lado lúdico da vida e na sua qualidade de antigo trânsfuga do Seminário de Évora, onde os meus avós o haviam enclausurado tentando domá-lo, não tinha particular simpatia pelo lado beato do regime.
Não se falava de política, mas nas entrelinhas, nas observações, nos comportamentos, era claro que as suas simpatias nesse domínio iam para algo se não mais democrático pelo menos mais popular. Prova disso, a carta que um dia achei numa das gavetas do escritório, de mistura com uma foto erótica a preto e branco estilo Leda e o Cisne e um pequeno cartão de publicidade do Borotalco Ausónia, em que uma cegonha trazia um bébé dependurado do bico: num antigo envelope de correio aéreo, em papel delicado, alguém agradecia a oferta que lhe fora feita pelo meu pai de vir morar ali em casa; declinava o convite por não ser necessário, embora ficasse reconhecido; a missiva vinha escrita à máquina, mas a assinatura era à mão: Juan Perón.
Quantos aos meus avós, nem se fala – desde que começou a guerra em África – tinha eu então 13 anos – a grande preocupação deles era saber se o conflito ainda iria durar muito tempo e assim acabar por alcançar o seu menino. De nada valiam as exaltações patrióticas que se ouviam lá no velho Philips da Pensão – “Angola – é nossa! / Angola- é nossa!”, primeiro, e depois os programas intitulados – “A verdade é só uma: Rádio Moscovo não fala verdade”. A certeza que eles tinham de que não me queriam ver na guerra era inabalável.
Enfim, todo um universo de situações a pedir a pena de um Manuel da Fonseca ou de um Alves Redol, de um Namora, de um Torga ou até de um Aquilino, em cenas dignas de um filme de Almodôvar… como aquela de um namoro clandestino entre uma empregada e um hóspede da Pensão ou aqueloutra do meu avô, o Mané da Rola, que sempre que virava um copo a mais, tirado às escondidas dos grandes barris da despensa, vinha depois para a cozinha, onde estavam as mulheres, dar vazão às suas frustrações e à sua revolta, rogando pragas às Finanças e ameaçando, para resolver as coisas de uma vez, que um dia ainda havia de colocar uma bomba “que rebente com eles todos!”
No final dos anos 60, ainda sem Universidade em Évora, os meus pais não tiveram outra alternativa que não fosse sair de Fronteira para poder dar formação superior aos filhos. Acompanhando o movimento generalizado de saída das áreas rurais rumo aos grandes centros, fomos viver para Vila Franca, na região da grande Lisboa. Continuámos, porém, a manter laços com o Alentejo, onde mantínhamos casa e íamos frequentemente. Os meus avós faleceram, mas durante anos e anos, de trespasse em trespasse, a Pensão continuou – o que me dava uma sensação de permanência para além da mudança, mesmo quando os meus pais também acabaram por falecer.
Agora, porém, saído o último inquilino, a atividade de café e hospedaria cessou e a casa está vazia. De comum acordo com as minhas irmãs e os meus primos, o velho casarão foi posto à venda – onde antes havia permanente burburinho, impera hoje o silêncio e no quintal as poucas árvores que sobreviveram ao cimento derramam pelo chão frutos que ninguém colhe e aos montes apodrecem.
Se fosse na América, que tem fome de passado, algum ricaço ainda haveria de o comprar para nele inaugurar um pequeno hotel de charme em que haveria pelas paredes fotos e objetos da época – sem falta um cartaz da acordeonista Eugénia Lima, que então animava os espectáculos da região, outro de Toiros em Sevilha, onde os aficionados locais queriam ir ao menos uma vez na vida, mais um dos perfumes Maja que se compravam em Badajoz, o velho Menino Jesus, que ainda hoje conservo, vestido com uma sainha de cetim sob a qual se esconde uma pilinha realista com pinta vermelha na ponta, fotos antigas a preto e branco dos ranchos na ceifa e na apanha da azeitona, fotos recentes da vila e das gentes de Fronteira… – e depois, como cereja no bolo, haveria também de recolocar na fachada, com ar retro, o velho dístico – Pensão Central.
Entre nós, porém, é pouco provável que isso aconteça. E como nem eu nem os meus primos nem as minhas irmãs temos meios para um projeto assim, das duas uma: ou se acha comprador que o transforme para habitação, ou o casarão – votado ao desprezo e sem consideração pela história da terra que nele se encerra – acabará sucumbindo de cansaço esperando depois os golpes de misericórdia do camartelo municipal.
Levados pelo tempo e pela morte os meus bisavós e tios da Boavista; os meus avós da rua da Lagoa; os meus avós e os meus pais da Rua de São Miguel, do ponto de vista pessoal não é preciso ser profeta para perceber que o ocaso daquele casarão da rua da Lagoa dá início ao prelúdio do meu próprio Réquiem.
Entretanto, quando por fim chegar a hora, não chores por mim, Alentejo. Peço-te apenas que me acolhas de volta à tua terra exausta como a um filho que regressa a casa procurando nela enfim refúgio e descanso de todas as suas penas e amarguras – ao cabo de uma peregrinação que começou lá atrás, há mais de 70 anos, em Fronteira, na Pensão Central.
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