Quatro anos depois do encerramento do ciclo de Passos Coelho o ataque aos funcionários públicos, alegadamente privilegiados, regressa às redes sociais e não só…
Quatro anos depois do encerramento do ciclo de Passos Coelho o ataque aos funcionários públicos, alegadamente privilegiados, regressa às redes sociais e não só, em grande parte por inabilidade do poder politico ou incapacidade de este informar sobre as situações reais (ver caso do “salário mínimo do sector público” mais elevado que o do privado) ou por o mesmo poder embarcar no ataque a profissionais, sejam os professores, sejam os enfermeiros, sejam uns e outros e todos os demais.
Quando nas redes sociais aparecem posts e comentários sobre os regimes alegadamente privilegiados dos funcionários públicos, relacionando-os com políticas recentes, sou frequentemente obrigado a esclarecer “foi Salazar!”, “foi Marcelo Caetano!”, “foi Cavaco Silva!” e até “foi negociado com Guterres!”…
Incapacidade do Estado Novo em atrair e manter os funcionários
Comecemos por Salazar e Marcelo Caetano.
Salazar, embora tenha reduzido transitóriamente os vencimentos dos funcionários através do chamado “imposto de salvação pública” e feito aprovar medidas de controlo das situações remuneratórias, em especial o sistema de letras de vencimento que vigorou durante décadas , não deixou de tentar criar condições para tentar fixar na função pública um corpo estabilizado de profissionais, sendo de apontar que em 1929 criou uma Caixa Geral de Aposentações que de algum modo procurasse garantir um sistema de pensões equiparável aos que haviam começado a ser legislados para sectores de actividade económica. Repare-se que não só inexistia à data um regime geral de previdência em os funcionários públicos pudessem ser enquadrados mas também que a existência de um regime privativo visava reter os funcionários na Administração.
A função pública chegou a ser mais atraente que o privado e a atrair um quadro de profissionais de referência num contexto de incerteza económica, mas de facto, apesar dos reajustamentos de remunerações com que o Ministério das Finanças de António Manuel Pinto Barbosa (1955-1965) procura repor o poder de compra, e da criação, em 1963, da ADSE, para ter em conta os esquemas de assistência na doença já praticados nas empresas, perde competitividade em relação àquelas e em meados dos anos 1960 no Grupo de Trabalho nº 14 – Reforma Administrativa da Comissão Interministerial de Planeamento e Integração Económica colocam-se questões como
- a proposta de durante os ensinos liceal e técnico se falar da Administração Pública por forma a prestigiar a imagem da função e suscitar vocações;
- a necessidade de definição de um Estatuto do Funcionalismo Civil, com vista a criar um sistema coerente e ultrapassar toda uma série de desigualdades e de particularismos, que levavam, para além de as empresas fazerem concorrência aos serviços públicos, a que os novos serviços fizessem concorrência aos tradicionais;
- a previsão de mecanismos de formação de funcionários;
- a revisão de remunerações, num contexto de uma inflação que o esforço de guerra contribuía para alimentar.
A urgência deste ultimo aspecto era evidente, e circulava como “boutade” que os funcionários públicos iam ser todos radiografados para ver quanto tempo aguentavam sem aumento de ordenado, não lhe tendo ficado atrás em humor (involuntário) o nome da medida aprovada em 1966: a criação de um Subsídio Eventual de Custo de Vida.
Merece ser recordado que na circunstância o Grupo de Trabalho nº 14 de onde partiu a proposta de que o INE realizasse um inventário dos servidores do Estado alertou – já então – para a existência de tarefeiros que se eternizavam nos serviços e para o recrutamento de pessoal pago por outras verbas, designadamente por verbas dos Planos de Fomento. Iniciava-se já então um modelo informal mas perverso – para uma função pública que deveria ter competência e estabilidade, segundo os requisitos definidos no Século XIX para o Civil Service inglês – a generalidade do novo pessoal inicia funções a título precário e/ou através de processos de selecção que não garantiam competência nem isenção.
Marcelo Caetano aquando da criação em 1968 do Instituto Português de Ciências Administrativas, a cuja Direcção presidia, deu prioridade às sessões de discussão do regime da função pública, aliás igualmente em estudo no âmbito do Secretariado da Reforma Administrativa criado em 1967 ainda com a assinatura de Salazar, com base em proposta do já mencionado Grupo de Trabalho nº 14, mas depois de aceder nesse mesmo ano de 1968 a Presidente do Conselho de Ministros deixou sobretudo obra legislativa no domínio das pensões de aposentação e sobrevivência. Em 1972 foi aprovado um complexo Estatuto da Aposentação – que clarificou e uniformizou regimes dentro da Administração Pública, e fixou como requisitos de aposentação os 65 anos de idade, os 40 anos de serviço na função pública e um período de carência de 15 anos, também dentro da intenção de que os funcionários desenvolvessem toda a sua vida profissional dentro da Administração.
25 de Abril, instauração da democracia e consolidação do regime ”estatutário” da função pública
O período de criação do regime democrático e os ciclos de Cavaco Silva e Guterres assistiram a uma consolidação do regime de função pública.
Embora a análise do pós 25 de Abril na função pública não seja coincidente por parte dos poucos autores que se têm abalançado a escrever sobre o tema, julgo poder afirmar que:
- no essencial foram prosseguidas as orientações mais ou menos consensualizadas desde os debates do Grupo de Trabalho nº 14 em meados de 1960;
- se caminhou para uma unificação da multiplicidade de regimes até aí existentes, bem expressa na formulação dos primeiros diplomas, que se referiam a “funcionários públicos e administrativos” e a “funcionários do Estado e dos organismos de coordenação económica”, e inclusive para a integração em regime de nomeação do pessoal, designadamente das instituições de previdência, provido em regime de contrato individual de trabalho;
- as modalidades de vinculação típicas continuaram a ser a nomeação e o contrato além do quadro (mais tarde “redenominado contrato administrative de provimento”) só mais tarde se tendo introduzido o contrato de trabalho a prazo, não convertível em contrato por tempo indeterminado;
- foi sendo regularizada logo no início a situação dos prestadores de serviços herdados do passado, mas a indisciplina nas admissões continuou, obrigando à criação de sucessivos ciclos de regularização;
- embora a forte inflação tenha obrigado a expressivas actualizações salariais, os reposicionamentos de carreiras assumiram inicialmente a forma de reajustamentos de letra, até sectores mais aguerridos terem começado a reivindicar a criação de tabelas “fora das letras” ou a indexação de salários.
Esta foi uma época em que os sindicatos da função pública, antes proibidos, nasceram …. e se dividiram, mas não retiremos daqui que foram os sindicatos ou mesmo os partidos de esquerda os únicos, ou mesmo os principais, protagonistas da melhoria da situação da função pública. O diploma que invocando a convergência com o regime geral (!?) reduziu para 60 anos, 36 de serviço e período de carência de 5 anos é de 1979 e do Governo Mota Pinto. Em termos de regime remuneratório foram activistas de direita que lançaram a reivindicação da convergência com as empresas públicas, a qual chegou pela mão do CDS a ter expressão na primeira Lei do Orçamento do regime constitucional. Os pacotes de 1977 articulados com o FMI e a chamada do CDS ao II Governo Constitucional afastaram estas veleidades “revolucionárias” mas é curioso ver que o processo de criação de institutos públicos quase-empresariais com pessoal em regime de contrato individual de trabalho começou a ter expressão em 1977, por muito que viesse a registar os seus casos mais emblemáticos (IAPMEI, ICEP, INE) a partir do ciclo de Cavaco Silva.
Embora tanto no Governo do Bloco Central, com Rui Machete, como nos Governos de Cavaco Silva, com Braga de Macedo, se tenham activado instrumentos relativos à extinção ou reestruturação de serviços, com recolocação de “excedentes” e “disponíveis”, e algumas das reestruturações tenham sido influenciadas por concepções conotadas com o New Public Management, o regime de vínculos (nomeação e contrato administrativo de provimento) e de remunerações (escalas indiciárias em vez de letras) patrocinado por Cavaco Silva e Isabel Corte – Real é ainda um regime estatutário. Um grupo de deputados do PSD avançou durante uma das votações do Orçamento com a contratação do pessoal operário e auxiliar em regime de contrato individual de trabalho mas o governo não se mostrou disposto a aproveitar.
Quanto ao regime de aposentação embora o calculo das pensões dos admitidos a partir de Setembro de 1993 passa a ser feito nos termos do regime da segurança social, mas mantém-se a sua inscrição na CGA. Quando muito, criou em 1991 um regime de pensão unificada.
E se Cavaco Silva primeiro-ministro não é hostil ao regime tradicional da função pública, o Guterres do primeiro Governo até aceita negociar com os Sindicatos através de Jorge Coelho e Fausto Correia, tendo como resultado o desmantelamento da legislação relativa a excedentes e a produção de toda uma série de diplomas laboriosamente consensualizados. Mas ao aceder, antes das eleições de 1999, a uma série de revalorizações de carreira com impacto muito significativo na despesa permanente, compromete os orçamentos dos anos seguinte. No plano político ver-se-á que Guterres trocara uma “maioria relativa” fácil de gerir por um “empate absoluto” que acabaria por conduzir à sua saída, datando do seu segundo governo os trabalhos pouco divulgados do ECORDEP que, justamente, alerta para a rigidez da despesa pública.
O Estado contra os seus funcionários
Os Governos de Durão Barroso e de José Sócrates não perderam tempo em tentar – na senda aliás de exemplos de outros países – pôr em causa o regime tradicional da função pública, apontando o primeiro para uma introdução gradual, por grupos de pessoal, do denominado contrato de trabalho da Administração Pública, vinculo de direito privado, o segundo para uma conversão em massa dos vínculos existentes em “contratos de trabalho em funções públicas” , vínculo qualificado ainda como de direito público, mas sem a protecção inerente à nomeação (salvo, teve ser concedido na negociação, quanto às situações constituídas até 2009).
O raciocínio é simples, embora nunca tenha sido cabalmente explicitado na formulação e divulgação das políticas: quando a contratação visa assegurar o funcionamento de unidades de prestação de serviços assegurados pelo Estado o recurso ao contrato de trabalho, para além de favorecer a circulação entre sector público e sector privado, permite a redução de pessoal por extinção do posto de trabalho, quando as unidades através das quais se opera essa prestação tiverem de ser extintas ou redimensionadas em função da procura, ou até quando forem objecto de concessão ou alienação a privados, sendo que desde o segundo Governo Guterres, com Alberto Martins em Ministro da Reforma do Estado e da Administração Pública o programa do Governo já apontava para que o Estado deixasse de ser prestador de serviços para ser regulador e financiador.
Estas medidas tiveram aliás o respaldo dos demagogos do Compromisso Portugal, que anunciavam ser possível reduzir de uma penada 100 ou mesmo 200 mil postos de trabalho na função pública , e, como acabaram por ser acompanhadas por congelamentos de progressões, e mais tarde por cortes nos vencimentos nominais, o poder politico acabou por ajudar a dar voz a uma onda de ódio contra os funcionários públicos “privilegiados” , com um discurso nem sempre coerente, chegando a alegar Vítor Gaspar que se justificava o corte de vencimentos como uma espécie de imposto sobre a estabilidade de vínculo que, na lei, já não existia.
Para quem esteja menos atento, assinalo que não só esta reforma não foi “revertida” – e deveria sê-lo no caso da administração fiscal que não me consta vá reduzir a sua escala ou ser transferida para o sector privado – como continua a informar reestruturações de carreiras que tinham sido adiadas. Como se concebe que os conservadores de registos sejam providos por contrato de trabalho em funções públicas e não por nomeação? É no entanto curioso que os próprios sindicatos pareçam agora apenas interessados em carreiras e remunerações e que os representados destes pareçam não ter interiorizado a mudança de vínculo, aliás continuam a ser alvo da inveja dos que passam a sua vida nas caixas dos comentários dos on lines.
O célebre Decreto-Lei nº 26 115, de 23 de Novembro de 1935 (“Promulga a reforma dos vencimentos do funcionalismo civil”).
Conforme Marcelo Caetano explicou em artigo publicado na revista Documentación Administrativa nº 100, com tradução de Miguel Junquera.
Embora sempre com grande desfasamento. Ver Melhoria das Condições Económico-Sociais do Funcionalismo Público, Ministério das Finanças, 1960.
Decreto-Lei nº 47 137, de 5 de Agosto de 1966.
Instituto Nacional de Estatística, Inquérito e Inventário dos Servidores do Estado, Continente e Ilhas Adjacentes, 31-12-1968.
Ciências Administrativas, nº 1, Maio de 1969.
Criado por Pina Moura, reuniu Rui Carp e Orlando Caliço (área do PSD), Teodora Cardoso e Vital Moreira (área do PS).
Declaração de interesses: o autor do presente texto exerceu as suas funções no Estado em regime de nomeação e no ensino superior privado em regime de contrato por tempo indeterminado celebrado em tempo parcial, pelo que não é um interesse próprio retrospectivo que o move a formular estes reparos.