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Sábado, Dezembro 21, 2024

Genocídio do Bangladesh

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A política de desinformação

Nos onze anos em que tenho trabalhado sobre a Ásia do Sul, nada me tocou mais do que a luta do povo do Bangladesh pela memória, justiça e responsabilidade pelo genocídio perpetrado pelas autoridades militares paquistanesas. Este genocídio, organizado em conjunto com organizações fanáticas islâmicas tanto do Paquistão Ocidental como do Oriental, destinava-se a destruir a identidade bengali assassinando elites, destruindo a diversidade religiosa e violando mulheres.

As minhas memórias mais vivas estão reflectidas no que escrevi após visitar, em Dezembro de 2013, a Unidade de Cirurgia Plástica e Queimados do Hospital da Faculdade de Medicina de Dhaka, onde estavam a ser tratadas inúmeras vítimas das ações terroristas. Aparentemente, estavam em questão as condições supostamente pouco democráticas das eleições que se aproximavam; no entanto, como explicou ‘Zead-Al-Malum – o então procurador público no Tribunal Internacional de Crimes do Bangladesh (TIC) – numa conferência pública realizada a 7 de dezembro de 2013, ‘os protestos desapareceriam se o Governo aceitasse os pedidos de dissolução do Tribunal’ (TIC). Todos os protestos contra a falta de credenciais democráticas dessas eleições não passavam de uma cortina de fumo usada para esconder o objetivo fundamental dos islamistas de obter impunidade para os culpados pelo genocídio.

Nada disto se percebia lendo a imprensa ocidental, e eu certamente não teria compreendido o que se estava a passar se não tivesse ido a Dhaka, falado com médicos, magistrados, académicos ou simples cidadãos. Muito pelo contrário, uma realidade meticulosamente construída e fictícia em que os mentores do genocídio foram apresentados como ‘líderes da oposição’, ‘empresários’ ou ‘entidades religiosas’ – impiedosamente perseguidos por um governo autoritário – foi vergonhosamente martelado em toda a imprensa ocidental (e sobretudo por algumas ONG como a ‘Human Rights Watch’.

Perceber até que ponto a realidade foi virada do avesso, como é que as mesmas organizações que supostamente deviam “vigiar” o respeito dos “direitos humanos” estavam efetivamente a trabalhar para proporcionar impunidade aos autores de genocídio, foi extremamente chocante. Com efeito, não teria podido lidar com isso se não tivesse testemunhado, no Iraque, uma ação semelhante desta mesma organização – que mais apropriadamente se poderia ter chamado Branqueamento de Genocídio Lda – com o objetivo de expurgar as responsabilidades das autoridades iranianas relativamente ao genocídio cometido em 1988 contra a sua própria oposição. O mesmo modus operandi foi seguido em ambos os casos: culpar as vítimas de genocídio de violar direitos humanos.

Na mais recente contribuição do ‘South Asia Democratic Forum’ (SADF) dedicada ao genocídio no Bangladesh, o Professor Uddin citou ‘As dez Etapas do Genocídio’, como descrito por Gregory Stanton em 1996 (classificação, simbolização, discriminação, desumanização, organização, polarização, preparação, perseguição, extermínio e negação).

Os últimos vinte e cinco anos ensinaram-nos que temos de acrescentar uma etapa completamente nova a esse processo: a inversão. Por outro lado, a fase de negação transformou-se numa categoria mais complexa de desinformação.

A desinformação não tem tanto a ver com mentir (ou, pelo menos, mentir descaradamente). Trata-se antes de criar dúvidas; ampliar pontos secundários e distorções, negando nesta base toda uma narrativa; distorcer o contexto e – talvez a técnica mais moderna – desinformar em nome da ‘luta contra a desinformação’.

Esta última estratégia de desinformação é, em si mesmo, uma inversão: uma que também é utilizada em narrativas relacionadas com genocídios. Como previ na altura: ‘Nenhum grau de apaziguamento que não a rendição completa a um Bangladesh talibanizado satisfaria os seus autores’. Esta análise tornou-se preocupantemente mais próxima da realidade após a re-talibanização do Afeganistão.

Seis meses após a tomada de posse dos talibãs em Cabul – nas famosas palavras do primeiro-ministro paquistanês na ocasião, data em que os afegãos quebraram as ‘cadeias da escravatura’ – assistimos à inação da comunidade internacional sobre o papel do Paquistão neste grande crime (contra os direitos humanos em geral e os direitos das mulheres em particular). A oportuna iniciativa legislativa ‘Antiterrorismo, supervisão e responsabilização no Afeganistão’ introduzido por um grupo de congressistas dos EUA foi ignorada e, na verdade, invertida pela Administração Biden.

De facto, em total contraste com a inação sobre esta realidade, vimos a Administração Biden distinguir o Paquistão como uma democracia e o Bangladesh como uma não-democracia, acoplando este selo a um conjunto de sanções diplomáticas contra o Bangladesh, exactamente na passagem sobre a data em que se celebrava o dia internacional da memória dos genocídios.

As violações dos direitos humanos não podem ser aceites em parte nenhuma do mundo e, naturalmente, não deverá haver qualquer excepção. Não obstante, a verdadeira questão é saber se quaisquer excessos alegadamente cometidos pelas forças de segurança do Bangladesh podem alguma vez ser comparados com a catástrofe dos direitos humanos que é a retalibanização do Afeganistão.

Poderá este acomodamento da retalibanização do Afeganistão, branqueamento das responsabilidades do Paquistão nesta catástrofe, e a guerra diplomática simultânea ao Bangladesh ser interpretada de outra forma que não seja perdoar o ataque islâmico e fanático ao grande país muçulmano secular do mundo?

Podemos esquecer que isto é simultâneo com o elogio da fação radical do wahabismo (o Emirado do Qatar) e da guerra ao primeiro líder saudita com a coragem de dissociar o seu país do wahabismo?

Podemos desvalorizar a agressão da Administração Biden ao Mundo Árabe, fazendo contra ele um acordo nuclear com o Irão, enquanto branqueia as actividades terroristas promovidas por este contra o mundo árabe, a começar pelo Ansar Allah?

Será que podemos perdoar esta administração por, em vez de pedir desculpa pela sua cooperação passada com os autores do genocídio – tão corajosamente expostos por diplomatas norte-americanos como Archer Blood – se entenderem mais uma vez mais com esses mesmos autores de genocídio, numa estratégia que visa a talibanização do Bangladesh?

Não, não podemos. Tanto pelo respeito que devemos às vítimas do genocídio do Bangladesh como pelo nosso dever de defender a liberdade, a democracia e os direitos humanos em todo o mundo – a começar pelos próprios Estados Unidos.

Nestas circunstâncias, nada serviria menos os interesses dos verdadeiros defensores dos direitos humanos do que fechar os olhos aos terríveis crimes contra a humanidade perpetrados pelas forças invasoras russas na Ucrânia em nome de qualquer geopolítica simplista e dicromática. A resistência heroica chefiada pelo Presidente Zelensky faz-se apesar dos apaziguadores ocidentais, e não em nome de uma ameaça imaginada da NATO à Rússia.

Os ucranianos resistem estoicamente ao ataque imperial ao seu país, os moçambicanos que resistem à Jihad para impedir o país de afirmar o seu potencial de produção de gás, e os Bangladeshi que lutam pela sua identidade, honra e vida, merecem-nos todos o mesmo respeito.

Como estas linhas estão a ser escritas pouco antes da celebração do Memorial do Genocídio do Bangladesh em 25 de março, os defensores dos direitos humanos devem ter a esperança de que aqueles que estão envolvidos na inversão da informação do genocídio aproveitem a oportunidade para pedir desculpas.

A página electrónica da Human Rights Watch na ocasião do Dia do Genocídio no Bangladesh do ano passado (jubileu do genocídio do Bangladesh) dá-nos pouca esperança de que isso aconteça. Em vez de quaisquer desculpas ou mudanças de atitude, podemos ver a continuação da mesma política de inverter o papel das vítimas e dos agressores.

Usando como pretexto o drama das vítimas de incêndio num campo de refugiados Rohingya em Kutupalong, o texto – datado exatamente do dia 25 de março de 2021, enquanto o incêndio aconteceu dias antes – é construído para esquecer o facto de o Bangladesh ter oferecido refúgio a mais de um milhão de vítimas de genocídio na Birmânia. De facto, o Bangladesh foi forçado a estabelecer barreiras no campo devido às ações dos extremistas islâmicos. O texto da Human Rights Watch teve o efeito, mais uma vez, de inverter o papel dos autores do genocídio e das vítimas de genocídio; no caso dos Rohingya, culpando também o Bangladesh, o único país que acolheu as vítimas deste genocídio moderno.

E, por isso, é tão importante, no dia 25de março de 2022, que todos os verdadeiros defensores dos direitos humanos se reúnam com os bengalis e, juntamente com eles, digam: é necessário lembrar o genocídio e exigir responsabilidades aos seus autores!

(Texto original em inglês com referências bibliográficas, publicado pelo SADF e pela ‘Human Rights without Borders’.

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