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Sexta-feira, Julho 26, 2024

Genocídio do Bangladesh

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

O dever da comunidade internacional de agir

O genocídio do Bangladesh em 1971 foi o crime mais importante contra a humanidade ocorrido após a entada em vigor da Convenção sobre a Prevenção e A Punição do Crime de Genocídio em 1951. Desde 2015, comemora-se a cada 9 de dezembro, o ‘Dia Internacional da comemoração e dignidade das vítimas do crime de genocídio e da prevenção deste crime’.

O Tribunal Internacional Criminal do Bangladesh julgou alguns destes crimes, no entanto, o Paquistão, país cuja instituição militar é responsável pela organização do genocídio, não reconheceu as suas responsabilidades nem agiu para punir os culpados ou indemnizar as vítimas.  Tratou-se de um crime que beneficiou de uma cumplicidade ou, pelo menos, de um silêncio das potências ocidentais – em primeiro lugar da diplomacia dos Estados Unidos. O crime não foi ainda plenamente reconhecido no plano internacional, e essa é uma preocupação essencial.

No entanto, para além do Bangladesh, é nos Estados Unidos que assistimos hoje ao mais importante processo de reconhecimento internacional deste crime. Sob a iniciativa do senador Benjamin Cardin (D-MD), os Estados Unidos promulgaram em 2019.01.14 a Lei Pública n.º: 115-441, conhecida como ‘A Lei de Genocídio e Atrocidades de Elie Wiesel de 2018’.

Como o seu nome indica, esta lei foi redigida no espírito que animava o vencedor do Prémio Nobel da Paz, Elie Wiesel, que expôs e denunciou os crimes do Holocausto, bem como outros genocídios e atrocidades. O acto é louvável – tanto quanto sabemos, trata-se mesmo do quadro jurídico mais abrangente e equilibrado que foi posto em vigor até agora no plano internacional – e, num espírito de prevenção, equaciona claramente aos princípios humanitários globais com os interesses nacionais dos EUA.

Penso, no entanto, que a iniciativa tem espaço para ser melhorada e afinada, tanto nos EUA, como no plano internacional, para os países e instituições internacionais que pretendem prosseguir e aprofundar a perspetiva muito positiva aberta pela iniciativa do Senador Benjamin Cardin.

A minha primeira preocupação com esta iniciativa é comum à que tenho com a maioria das iniciativas internacionais em matéria de direitos humanos, e diz respeito ao papel crucial atribuído às ‘organizações da sociedade civil’ (mencionadas cinco vezes numa lei relativamente concisa). As verdadeiras organizações da sociedade civil, que saem das preocupações familiares ou de grupo, ou mesmo dos princípios humanitários gerais, devem, naturalmente, ser vistas como intervenientes importantes numa legislação deste tipo.

A realidade, porém, mostrou-nos como as ‘GONGO’ (organizações governamentais ‘não governamentais’) – ou organizações equivalentes de fins lucrativos ou de interesse próprio mascaradas como ‘instituições de caridade’ – ocuparam a maior parte do espaço da ‘sociedade civil’. Em nenhuma outra área os conflitos de interesse são mais perigosos do que nas organizações especializadas em julgar os crimes de outras pessoas – nomeadamente, os direitos humanos.

Como observámos em publicações anteriores (nomeadamente, Casaca, 2022), a desinformação promovida pela principal ‘organização de direitos humanos da sociedade civil’ nos EUA, a Human Rights Watch – uma organização que não divulga as suas fontes do seu financiamento – tem sido a principal arma usada para obscurecer factos relativos ao genocídio de 1971 no Bangladesh.

Atribuir a organizações deste tipo um papel crucial no quadro jurídico internacional dos direitos humanos, sem uma avaliação adequada da sua integridade e reais objetivos, equivale a convidar a raposa a guardar o galinheiro.

A segunda preocupação prende-se com a própria essência da mensagem de Elie Wiesel: a necessidade de recordar – e recusar a impunidade – como instrumento importante para evitar a repetição do crime.

A lei, na sua secção 3, afirma que:

‘Será política dos Estados Unidos (…) prosseguir uma estratégia do Governo dos Estados Unidos para identificar, prevenir e responder ao risco de atrocidades através (…) do reforço das respostas diplomáticas e o uso efectivo da ajuda externa para apoiar medidas provisórias e adequadas de justiça, incluindo a responsabilização penal para atrocidades passadas;’.

Este apoio é bem-vindo, mas as sanções inspiradas na ‘Lei Magnitsky’ devem ser baseadas no Estado de Direito, incluindo o seu carácter geral e a sua proporcionalidade, caso a responsabilidade criminal pelas atrocidades passadas não se concretize.

Ainda nos EUA, há a destacar a proposta de resolução 1430/117 do Congresso na sua segunda sessão ‘reconhecendo o Genocídio do Bangladesh de 1971’. Ela é patrocinada pelo Congressista Chabot, Steve e copatrocinada pelos congressistas Khanna, Ro ; Porter, Katie e Malinowski, Tom . Num texto claro diz-se o que é essencial dizer, nomeadamente apela-se ao Governo do Paquistão, perante provas esmagadoras, para reconhecer o seu papel nesse genocídio, apresentar desculpas formais ao Governo e ao povo do Bangladesh, e processar, de acordo com o direito internacional, quaisquer perpetradores que ainda estejam vivos’.

O texto desta resolução é uma referência que poderia muito bem ser utilizada por outros organismos nacionais e internacionais para exigir a responsabilização das autoridades paquistanesas.

O Parlamento Europeu tem uma forte tradição em resoluções não vinculativas sobre questões de direitos humanos, mas a ação da União Europeia baseia-se em legislação que está menos avançada que a existente no quadro jurídico comparável dos EUA em matéria de obrigações humanitárias para a política externa.

A “Lei Magnitsky” dos EUA de 2012 inspirou legislação semelhante na União Europeia, nomeadamente o Regulamento do Conselho (UE) 2020/1998 , de 7 de dezembro de 2020. Infelizmente, a versão europeia contém consideravelmente menos contributos supervisão parlamentares.

No que se refere à obrigação de considerar a ‘responsabilização criminal pelas atrocidades passadas na política externa’, a União Europeia está também menos avançada do que os EUA.  Como o seu nome indica, o Regulamento (UE) 2022/838, do Parlamento Europeu e do Conselho de 30 de maio de 2022, alterando o ‘Regulamento (UE) 2018/1727 que diz respeito à ‘preservação, análise e armazenamento na Eurojust de provas relativas ao Genocídio, Crimes Contra a Humanidade, Crimes de Guerra e Crimes Conexos’, tem alguns pontos de contacto com a ‘Lei de Genocídio e Atrocidades de Elie Wiesel de 2018’. No entanto, é diferente em alguns aspectos importantes.

A iniciativa da UE dirige-se a uma agência executiva específica e não a toda a política externa da UE. Está também apenas preocupada com a actual agressão russa na Europa – o que é lamentável, porque as iniciativas em matéria de direitos humanos têm de ser gerais na sua elaboração para serem credíveis.

No que diz respeito às sanções, a experiência da anterior legislação ‘antiterrorista’ mostra como é crucial ter procedimentos plenamente conformes ao Estado de Direito, uma questão a que dediquei um artigo numa revista especializada legislação criminal (Casaca, 2015). A falta de procedimentos conformes ao Estado de Direito no quadro antiterrorista permitiu ao principal patrocinador mundial do terrorismo (Irão) conseguir que o Ocidente colocasse de forma imoral e ilegal o seu principal grupo de oposição na lista de organizações terroristas.  Por conseguinte, também a legislação inspirada pela Lei Magnitsky, incluindo as suas versões europeias, poderá ser usada para os fins inversos aos quais ela foi criada, se os princípios essenciais de Estado de Direito não forem aplicados.

O Dia Internacional de ‘Comemoração e Dignidade das Vítimas do Crime de Genocídio e da Prevenção deste Crime’, em 2022, é a ocasião certa para iniciar um movimento que exija a responsabilidade criminal universal por atrocidades passadas, tanto a nível nacional como internacional.

O genocídio do Bangladesh será necessariamente um tema de topo nesta agenda, mas a sua abordagem deve ser articulada com a feita a outros genocídios e atrocidades que ocorreram mais recentemente.

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