No combate aos incêndios florestais nem tudo pode ficar previsto e regulado por via legislativa. A Gestão tem de ter também o seu espaço. E avaliar não é necessariamente punir.
Como escolher os titulares dos comandos operacionais?
A controvérsia em torno do combate aos grandes incêndios florestais de Junho e de Outubro de 2017 abrangeu também a definição dos comandantes operacionais de protecção civil – nacional, distritais, e de agrupamento – que teriam sido objecto de remodelação pouco tempo antes da “época de incêndios” em resultado de compadrios políticos, envolvendo alegadamente a integração de elementos com fracas capacidades de comando operacional.
Chegou a ser exigido que os comandos fossem preenchidos por concurso público e houve quem chegasse a prometê-lo. Felizmente, tal não se concretizou. Todos estaremos de acordo em que os lugares dirigentes da Administração Pública – para não falar de todos os postos de trabalho (!) – deverão ser preenchidos por critérios de competência – o que não é o mesmo que preenchê-los por concurso público, havendo sim que estabelecer um conjunto de requisitos a cumprir e exigir de quem escolhe uma procura honesta, que necessariamente deve excluir o compadrio político, das melhores soluções, articuladas entre si. Por maioria de razão quando estão em causa comandos operacionais não faz sentido abrir concursos para lugares concretos de comandantes e segundos comandantes de cada um dos distritos ou agrupamentos da organização da protecção civil, assim como não se abrem concursos para o comando de unidades do exército ou de navios na Armada.
As Forças Armadas atribuem funções de comando a oficiais, aderentes a determinados valores, e treinados, mais ou menos adequadamente, para exercer essas funções, cuja capacidade de exercício efectivo vai sendo bem ou mal posta à prova. Sendo certo que só em situações de conflito se podem tirar conclusões definitivas sobre a adequação do treino, a capacidade de exercício e até sobre a doutrina de intervenção.
A protecção civil, mais jovem, também precisa de dispor de um pool de gente preparada, exercendo já ou não funções na sua estrutura, dentro do qual se possam recrutar comandantes operacionais, com experiência de intervenção se não na área, pelo menos em áreas conexas, formação e capacidades adequadas. Aqui ao menos as “situações de conflito” ocorrem todos os anos e as insuficiências e falhas de comportamento são mais facilmente identificáveis e devem levar, doa a quem doer, a remodelações.
Defendendo que haja flexibilidade na nomeação de comandantes operacionais, insisto na necessidade de haver a posteriori avaliação das escolhas feitas. Quem cometeu erros de apreciação nas escolhas deve ser confrontado com eles e esses erros têm de ser aferidos numa óptica de gestão, com base num apuramento de factos pela própria administração, e não numa óptica de legalidade, pelas autoridades judiciais.
Deixar trabalhar os comandos operacionais
Segui com alguma atenção os acontecimentos relacionados com o incêndio de Monchique em 2018 e fiquei impressionado pela forma como o Público “filou” a Autoridade Nacional de Protecção Civil por o comando nacional ter assumido directamente o combate ao incêndio de Monchique dias depois do que a doutrina construída internamente prescrevia. Respondia Patrícia Gaspar estar-se perante meras recomendações, insistia o jornal que se tratava de uma “regra” que tinha sido violada.
A discussão faz-me lembrar o início da discussão sobre o carácter vinculativo ou não das recomendações do Tribunal de Contas aprovadas com os seus relatórios de auditoria. Numa primeira abordagem foi sustentado que, pelo menos, o Tribunal, em futuros acontecimentos relativos ao organismo auditado, não deixaria de tomar em conta se para eles tinha ou não concorrido o desprezo pelas recomendações formuladas, mas não se pugnava pelo carácter estritamente vinculativo das recomendações. Pessoalmente, tendo a olhar para estas “regras” da protecção civil da mesma forma.
Já no Correio da Manhã a assunção da direcção das operações pelo comando nacional, todavia prevista, era tratada como uma decisão de afastamento do comandante operacional distrital, que já teria “falhado” muitos anos antes no combate a outro incêndio. Quem terá encomendado o recado?
Articular esforços com as populações
A legislação sobre protecção civil dá um grande relevo à intervenção dos presidentes da câmara e às comissões municipais de protecção civil e durante os fogos do Verão de 2017 diversos presidentes da Câmara (refiro por todos o de Mação, com base em planos, muito pormenorizados previamente aprovados) tiveram grande protagonismo no terreno, não deixando de criticar a alocação de meios quando entenderam justo fazê-lo. No recente incêndio de Monchique registo também a presença do presidente da Câmara, cuja residência esteve, segundo ele próprio indicou, em risco de ser consumida pelo fogo. Não é muito claro se a possibilidade de criação de unidades locais de protecção civil, sob a orientação dos presidentes de junta de freguesia, tem sido ou não aproveitada e se a agregação forçada de freguesias imposta pela Lei Relvas facilitou ou surgiu como um obstáculo.
Na generalidade das notícias sobre incêndios florestais tem sido dado relevo à participação das populações no combate aos incêndios para defesa das aldeias e lugares, muitos deles relativamente despovoados, ou até de bens próprios ou dos vizinhos. No recente episódio de Monchique, tal sucedeu também, com a particularidade de a certa altura ter sido dada uma ordem de retirada das populações consideradas em risco que fez correr muita tinta – com n juristas a explicar, correctamente, que por força de n leis as pessoas podem ser mandadas retirar mesmo contra vontade e até inculpadas por desobediência se não cumprirem – mas sem que percebesse bem se se tratava de uma ordem genérica para redução de riscos ou se visava situações concretamente identificadas e se foram enviados com a GNR elementos que conhecessem os locais e as pessoas.
Situações houve em que as populações se queixaram de a GNR, mal orientada, pretender lançá-las por caminhos mais perigosos. Um amigo economista escreveu a propósito: Ah e tal, não houve mortes mas chatearam as pessoas. Como não houve mortes impediram que a malta do cds partisse em peregrinação como o fizeram em Pedrógão. Já agora, para muitos políticos, jornalistas e até economistas, que usam e abusam da “eficácia” e “eficiência” sem saberem o significado têm aqui um bom exemplo: a GNR foi eficaz (objetivo cumprido) mas não foi eficiente (custos, pessoas retiradas das casas, excessivos).
A peça mais impressionante que sobre o assunto vi publicada foi um trabalho sobre a tentativa de evacuação de Marmelete, terra que já tinha defendido as suas casas no grande incêndio de 2003, e talvez o conseguisse fazer de novo quinze anos depois, se o fogo chegasse a aproximar-se, o que não se verificava . Quem teve de sair de Marmelete, numa humilhação escusada, foram os guardas entrados inopinadamente às quatro e meia da manhã. No site da Câmara esta “aldeia” figura como sede da freguesia. Não havia ligação com a protecção civil municipal?
Gerir as compensações e reparações
Não posso deixar de admirar a forma como tantas entidades públicas e privadas se envolveram após os incêndios de 2017 na recolha ou na promessa de ajudas, como as seguradoras contabilizaram as suas responsabilidades que cobriam apenas, como aliás se confirma no caso de Monchique, uma parte dos prejuízos, e como o Governo conseguiu por via legislativa pôr alguma ordem no assunto.
O que não me parece evidente é a orientação que os poderes públicos seguem nestas compensações e reparações:
- são arbitradas apenas no caso de grandes catástrofes?
- constituem o reconhecimento de que a função protecção civil não conseguiu proteger os habitantes?
- visam assistir famílias e empresas que não têm meios para reconstruir as suas casas ou as suas instalações?
ou, de forma mais geral
- visam repor o património das pequenas comunidades atingidas, evitando o seu esvaziamento?
É que, sem prejuízo da justiça das múltiplas acções judiciais que se anunciam sobre os abusos, etc., algumas destas razões poderiam, por exemplo, levar a ajudar à reconstrução de segundas ou terceiras habitações de pessoas ligadas às “terras” de origem que mantêm o seu “número fiscal” nas cidades e cuja ligação importaria manter.
Não vejamos estas questões a branco e preto: alguns dos sinistrados de Pedrógão Grande e concelhos próximos e da “estrada da morte” eram habitantes dos distritos de Lisboa e Setúbal em férias na sua terra.
Refiro-me sobretudo às situações de guerra entre Estados, em que, por exemplo nas Guerras Mundiais, foram por várias vezes postas a nu falhas de comandantes com curricula e antiguidades que os tinham levado ao exercício de elevadas responsabilidades, quando não também erros de organização e até inadequação de doutrinas militares adoptadas pelos altos comandos, supervenientemente constatada.
Os “acontecimentos” conexos com os incêndios de 2017 não podem deixar de fazer reflectir sobre os requisitos exigidos: quando se postula a necessidade de licenciatura pretende-se garantir um requisito cultural ou profissional? O comandante operacional nacional de então, recordamos, obtivera uma licenciatura criada por uma escola politécnica pública com base numa creditação “tipo Relvas” da sua experiência. Era isso que se pretendia?
A circunstância de o anterior comandante operacional nacional de protecção civil ter sido detectado numa situação de incompatibilidade – gestão de um aeródromo – não deveria ter sido impeditiva da avaliação do seu trabalho, a não ser que tivesse relação directa com falhas de comando. Parece ter fornecido um bom pretexto para o substituir sem que tal avaliação fosse feita ou tornada pública.
Deliberadamente, não me irei, para este artigo, actualizar sobre o “estado da arte” nesta questão das recomendações do TC.
Ver por exemplo a peça de Valentina Marcelino no DN de 9 de Agosto de 2018. “Por que são as pessoas obrigadas a sair das casas? “O valor da vida sobrepõe-se a todos os direitos” “Um constitucionalista e dois juízes explicam como a lei está do lado das autoridades quando estas obrigam as pessoas a abandonar as suas casas”.
Com grande sentido de oportunidade e isenção partidária, dizia, segundo a peça, o juiz conselheiro Mário Mendes “Admitir que uma pessoa tem direito a ficar em sua casa e, eventualmente, morrer, seria uma forma de eutanásia que nem o BE permite”.
Doutor Mário Bairrada, Facebook, em 11 de Agosto de 2018.
Mafalda Gomes, “Marmelete. A aldeia que se levantou contra os guardas da GNR”, jornal i, em 9 de Agosto de 2018.
Eventualmente com uma hipoteca garantindo que o Estado fosse ressarcido da ajuda em caso de decisão de venda da habitação reconstruída.
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