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Sexta-feira, Dezembro 20, 2024

Getúlio Vargas: um legado de desenvolvimento e democracia

Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Carolina Maria Ruy, em São Paulo
Pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical e jornalista do site Radio Peão Brasil. Escreveu o livro "O mundo do trabalho no cinema", editou o livro de fotos "Arte de Rua" e, em 2017, a revista sobre os 100 anos da Greve Geral de 1917

A história de Getúlio Vargas e suas transformações no Brasil: Ministério do Trabalho, CLT e grandes empresas como a CSN e Petrobras.

Getúlio Vargas foi o presidente que proporcionou mudanças mais profundas no Brasil. Não é à toa que sua tomada de poder ficou conhecida como revolução, a Revolução de 30.

Entre as principais mudanças destaco:

A criação do Ministério do Trabalho e Emprego, em novembro de 1930, uma das primeiras medidas tomadas após assumir o Governo Provisório.

Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), de 1º de maio de 1943, sua obra mais radical e transformadora.

E a construção de grandes empresas nacionais como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Vale do Rio Doce (atual Vale) e a Petrobras, em um processo que impulsionou o crescimento econômico e social. Duas já foram privatizadas e a Petrobras é alvo da sanha privatista.

A indústria, que até então era dominada por setores como vestuário e alimentação, começou a ganhar investimentos para produzir matérias-primas (cimento e aço, principalmente) (1), máquinas e equipamentos.

Além disso, seu governo criou os ministérios da Saúde e da Educação; o primeiro Código Eleitoral, instituindo o voto secreto, o voto feminino, e desvinculando a direito de voto à renda; o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1936, que fez o primeiro censo em 1940; o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES(2)), em 1952; e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), em 1942, que proporcionou qualificação e ascensão profissional para trabalhadores de vários setores.

Através destas ações, o Brasil passou de uma sociedade agrário exportadora, com uma mentalidade escravista nas relações de trabalho, um mercado voltado para o capital internacional, principalmente inglês, um sistema eleitoral precário, com voto aberto (o que levava à prática do voto de cabresto), para uma sociedade industrial e urbana, mais organizada, com mecanismos para conhecer o país e criar políticas públicas, com indústrias para impulsionar o crescimento, com um sistema eleitoral mais civilizado e, por isso, mais democrático, e, sobretudo, com leis para conter a exploração de caráter escravista que era generalizada nas relações de trabalho.

Sindicalismo

Na esteira da CLT, seu governo criou a estrutura sindical que permanece até hoje, ainda que sob constantes tentativas de destruição. A unicidade, prevista nesta estrutura, fez com que os sindicatos fossem mais politizados e não concorressem entre si. A disputa se dá nas eleições sindicais e exige a participação dos trabalhadores, e não entre sindicatos da mesma categoria na mesma base, o que seria uma concepção calcada na ideia da “livre concorrência”. O modelo de unicidade permitiu o surgimento de sindicatos fortes e com influência política.

Um ponto importante na história de Getúlio foi a Greve de 1953, que aconteceu em São Paulo mobilizando categorias como têxteis, metalúrgicos, gráficos e marceneiros. A greve só foi resolvida com a intervenção do presidente, já que os grevistas não conseguiram negociar com o governador paulista. Nos seus desdobramentos, devido a questões maiores por trás do movimento, como o custo de vida e o diálogo com os trabalhadores, o ministro do trabalho, José de Segadas Viana, foi substituído pelo então deputado federal João Goulart (PTB/RS).

Getúlio Vargas, Raulino de Oliveira e Amaral Peixoto na inauguração do Alto Forno ll da CSN, em 20 de fevereiro de 1954. Foto: Fundação CSN

Em fevereiro do ano seguinte, Goulart propôs um aumento de 100% do salário-mínimo. Foi uma proposta radical que o tornou alvo do ódio dos empresários e da imprensa. Pressionado, Goulart renunciou ao cargo de ministro. O presidente, entretanto, garantiu o aumento no dia 1º de maio de 1954.

Carta-Testamento

A postura de Vargas, ao assumir a defesa dos trabalhadores contra interesses das classes dominantes, fez com que o poder de fogo destas classes o pressionasse ainda mais. Até que, sob constantes ameaças, decidiu tirar sua própria vida em 24 de agosto de 1954, esfriando o clima de golpe que se formava.

A revolta da elite com o aumento do salário mínimo é apontada na Carta-Testamento que Getúlio Vargas deixou ao suicidar-se: “Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios”.

A Carta-Testamento é um dos mais importantes e reveladores textos políticos da nossa história. Nela, Getúlio não deixa dúvida sobre as conspirações que precipitaram sua morte, revela seu compromisso com os trabalhadores, suas expectativas para o país e também preocupações acerca da dominação do capital estrangeiro sobre o patrimônio brasileiro.

Críticas associadas à Vargas

Existem duas críticas frequentes associadas à Getúlio Vargas. Uma é que ele teria “engessado” o movimento operário, atrelando-o ao Estado. Outra é a acusação de autoritarismo, chegando até mesmo, algumas pessoas a relacioná-lo ao fascismo, o que é um erro (quando o Brasil, sob governo de Getúlio, entrou na 2ª Guerra, em 1942, entrou para derrotar o fascismo e o nazismo).

No prefácio do livro “O dia em que Vargas morreu”(3), o jornalista Wilson Figueiredo diz que a CLT “amorteceu o choque de classes e dissipou o potencial de lutas num grupo social emergente”.

Da mesma forma, o sociólogo Leôncio Rodrigues, em “Capitalismo industrial e sindicalismo no Brasil” (4), diz que uma “série distinta de interferências” suavizou o conflito de classes nas sociedades industriais”, referindo-se à criação do Ministério do Trabalho, da estrutura sindical e da CLT.

Os dois livros são de 1966 e, talvez, naquela época não havia a dimensão do que foi a greve de 1953, da criação do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 1955, ou mesmo do impacto da CLT e de todas as mobilizações e conquistas sindicais que se deram sob vigência desta estrutura sindical. Na República Velha, quando a exploração do trabalho assalariado se aproximava do abuso escravista, as reivindicações operárias restringiam-se à sobrevivência: salário, que era um salário de fome, e jornada de trabalho, que passava em muito às oito horas diárias.

Sobre a ideologia de que ao pressionar a classe trabalhadora, ela se revoltaria, por trás da crítica sobre o “engessamento da classe operária”, cito um trecho do livro de Eric Hobsbawn “Como mudar o mundo”, que diz que a previsão de Karl Marx de que o colapso do capitalismo ocorreria mediante a “expropriação dos expropriadores” não se confirmou no longo prazo.

Segundo ele: “Depois da década de 1840, Marx e Engels tampouco esperavam que o fenômeno gerasse a pauperização politicamente radicalizadora em que depositavam suas esperanças. Como era óbvio para ambos, não havia, de modo algum, amplos segmentos do proletariado que estivessem se tornando mais pobres. Com efeito, um observador americano dos congressos operários do Partido Social-Democrata Alemão na década de 1900 viu que os camaradas que deles participavam pareciam um ou dois pães acima da pobreza” (5).

Além disso, em 1951 os comunistas se aproximaram do governo e passaram a influir diretamente na política e nos sindicatos. Importante considerar que, mesmo após o Estado Novo e a perseguição aos comunistas, Luís Carlos Prestes, ainda preso, orientou o Partido a dar apoio incondicional ao Getúlio contra o avanço do fascismo e depois o apoiou abertamente na eleição de 1950.

Sobre a questão do perfil autoritário, pondero que não podemos olhar o Getúlio dos anos de 1930 e 1940 com os olhos de hoje. Aquele foi um período de mudanças no mundo impulsionadas por eventos como os ecos da Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), a Revolução Russa (1917), a Crise Econômica de 1929, a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945) e o início da Guerra Fria (1947). O governo Vargas protagonizou uma ruptura com um sistema econômico e social e conseguiu fazer com que essas mudanças incluíssem o povo no projeto de desenvolvimento.

Para isso precisou tomar medidas duras. Não se faz a revolução de forma diplomática e pacífica. A crítica que o acusa de autoritário é tendenciosa e desproporcional frente a transformação que ele promoveu no país.

Avanço civilizatório

Dez anos depois de seu suicídio, o golpe militar de 1964, na contramão da Revolução de 30, impôs uma política econômica recessiva e uma relação de dependência com os EUA. Tramado pela mesma composição de forças que conspirou contra Vargas, a ditadura promoveu vinte anos de atraso político, econômico, social e cultural.

Preconceitos e injustiças contra a memória de Getúlio cresceram naquele contexto de ditadura e nos anos de aprofundamento do neoliberalismo. Por um lado, alimentou-se a ideia de que ele era “populista”, “autoritário” e “manipulador das massas”, por outro o dogma do livre mercado se enfronhou por todos os setores da sociedade.

Em 2017, as reformas liberais de Michel Temer, com ampla retirada de direitos trabalhistas, tiveram efeitos nefastos sobre o país, como a fragilização dos sindicatos, a precarização do trabalho, a diminuição do rendimento médio da população, a desindustrialização, a elevação do número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, fome generalizada, além do aumento da criminalidade e da violência.

A reforma trabalhista, ao contrário da CLT, retirou pessoas da classe média jogando-as na pobreza.

Mas a radicalidade das mudanças ocorridas sob os governos de Getúlio Vargas é algo incontestável. Ainda que feridos e ameaçados, seus maiores legados, as indústrias, as instituições estruturantes, o Código Eleitoral e, sobretudo, a CLT, permanecem como nossa base constitutiva e devem ser valorizados. Assim como, pelo bem do país, seu projeto nacional desenvolvimentista deve ser continuado.

 

Notas

(1) Suzigan, Wilson “A Industrialização de São Paulo: 1930-1945”.

(2) Chamava-se BNDE, o S foi adicionado em 1982, com a criação do Finsocial.

(3) Araken Távora, “O dia em que Vargas morreu”, Editora do Repórter, 1966.

(4) Rodrigues, Leôncio “Capitalismo industrial e sindicalismo no Brasil”, 1966, Editora Difusão Europeia do Livro.

(5) Hobsbawn, Eric, “Como mudar o mundo, Marx e o marxismo, 1840 – 2011”, Companhia das Letras, 2011.


Texto em português do Brasil

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