A morte de Giovanni Sartori (1924-2017), aos noventa e dois (quase noventa e três) anos, representa uma grave perda no panorama da Ciência Política mundial.
Consulto com frequência os seus livros, ainda que entre ele e Norberto Bobbio as minhas afinidades estejam mais do lado de Bobbio. Até pelas posições políticas. Mas, sobretudo, pela clareza menos rebuscada de Bobbio. Os textos de Sartori, todavia, foram sempre para mim de leitura obrigatória. “Partidos e Sistemas de Partidos”, “Elementos de Teoria Política”, “O que é a Democracia”. Por exemplo. Até houve um seu pequeno livro que me influenciou muito, ao ponto de acabar por escrever um ensaio inspirado no dele. Trata-se de “Homo Videns – televisão e pós-pensamento”, uma crítica ao império da televisão e da imagem e à queda do “Homo Sapiens” e da “Typographic Mind”.
Acelerei o discurso e acabei por escrever o “Homo Zappiens – o feitiço da televisão”, um híbrido feito de zapping e de vontade de conhecer, em velocidade e através da imagem. Outro registo, outra conversa, outros conceitos, mas uma mesma visão crítica da “Image Mind”.
Devo-lhe, de certo modo, a ideia de escrever um ensaio sobre a televisão, ainda que também tenha sido influenciado por outro grande, Italo Calvino, nos seus “Six Memos for the next Millennium”, as “Charles Eliot Norton Poetry Lectures”, de Harvard. Sim, mas a motivação decisiva foi este livro de Sartori. E fiquei-lhe grato, porque acho que escrevi um belo ensaio (perdoem-me a imodéstia) que está a pedir uma reedição.
“Olhar do alto a pequenez”
Sartori era um académico de grande nível. Foi professor nas Universidades de Florença, de Stanford e de Columbia. Pelos méritos científicos teve inúmeros doutoramentos honoris causa. Mas não era só um académico. Metia também as mãos na massa, com grande sentido crítico e imaginação. Baptizou dois sistemas eleitorais italianos que ficaram famosos: o Mattarellum e o Porcellum. Que nomes!
Mas a verdade é que acabaram por ficar no léxico político corrente. Era colunista no “Corriere della Sera” e intervinha com muita regularidade nos temas quentes em debate em Itália. Dizia que “Il mondo è diventato così complicato che sfugge alla comprensione anche degli esperti”; e, quando o acusavam de altivez, respondia que “certi personaggi sono dei pigmei. É inevitabile guardarli dall’alto in basso”. Certeiro, o nosso Sartori. E não é que tinha razão? A pequenez tem mesmo de ser olhada de cima! E isto vale sobretudo para a política! Mas não só!
Gravitas!
Numa entrevista recente a Gad Lerner, em 2014, Sartori, que considerava Berlusconi imbatível nos debates televisivos – dotado de uma grande “abilità di scena” e um grande “calcolatore” -, classificando, todavia o seu reinado de quase vinte anos como “sultanato”, disse, de Matteo Renzi, duas coisas que retive, com preocupação, na minha memória: “velocista” e “senza gravitas”.
Como Obama, que terá sido seu aluno na Columbia University. Bons para conquistar consensos, mas fracos no governo dos países. Conservador, mas cultor apaixonado da crítica, Sartori, florentino, não apreciava muito a política sem “gravitas”, distanciando-se, portanto, muito do que é a política dominante de hoje.
A política sem densidade, feita com a rapidez do “soundbite” e do culto da imagem para milhões, como fantástica arma de conquista do consenso. E até dizia, no “Homo Videns”, que “um milhão de imagens não dá um único conceito”. Ou seja, não serve para conhecer, para saber, para compreender! E talvez tenha sido por isso mesmo que escreveu aquele livrinho, entrando numa área tão esquecida pela teoria política clássica, de que ele foi um fantástico cultor.
Matteo Renzi
Matteo Renzi será o vencedor das primárias de um PD amputado de uma sua ala, chefiada por Pier Luigi Bersani e inspirada em Massimo D’Alema, o ex-primeiro ministro italiano que fora um dos delfins do mítico Enrico Berlinguer. O que já lhe “rendeu”, nas sondagens, uma perda de cerca de três pontos. Mas os resultados conhecidos até aqui é para aí que apontam, uma sua inequívoca vitória.
E se Sartori tiver razão, sobre a ausência de “gravitas” e sobre o seu “velocismo” (que, como diria Paul Virilio, cega!), então o futuro de Itália e da própria Europa não surge muito risonho, num momento em que precisamos desesperadamente de “gravitas”, se não quisermos ver afundar um projecto tão belo como o da construção da União.
Na verdade, Renzi cometeu erros muito graves, perdendo o referendo e perdendo também uma parte do seu próprio partido. Talvez tenha sido mesmo por falta de “gravitas”, que, de resto, é pouco compatível com a especialidade do “velocismo”. Sem terem grande densidade conceptual, estas duas categorias colhem muito do que é o problema contemporâneo da política, designadamente da política europeia.
E isso faz-nos sentir ainda vez mais a falta de personagens densas como a de outro italiano ilustre, o saudoso Altiero Spinelli, um dos pais fundadores da União. Mas também nos fará muita falta este grande intelectual, de nome Giovanni Sartori! A mim faz, de certo, que o lia no “Corriere” e nos livros, mesmo alinhando politicamente mais com Bobbio do que com ele!