Maior dos cineastas vivos, Godard tem uma filmografia de mais de 120 obras – entre curtas e longas-metragens.
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Minha geração – pré-TV por assinatura, pré-internet, pré-YouTube, pré-streaming – ouviu falar dele, pela primeira vez, através de uma música: “O Eduardo sugeriu uma lanchonete / Mas a Mônica queria ver um filme do Godard”. A primeira, única e última vez em que levei uma namorada para ver um filme do Godard foi em 2003. Saímos da faculdade lá na Avenida Paulista e fomos ao Top Cine, que sempre programava filmes franceses, sobretudo Rohmer e Truffaut. Para nossa sorte, estava em cartaz o melhor de Godard – O Desprezo.
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Um dos produtores de O Desprezo, o norte-americano, exigiu que Godard exibisse mais cenas de Brigitte Bardot nua – mais do que aquela em que BB nada sem roupa pelo mar calmo e cristalino da Ilha de Capri. O cineasta francês resistia. “Je veux voir le cul de Bardot!”, teria replicado o produtor, impondo que a bunda da atriz aparecesse mais vezes – e com mais destaque. O Desprezo custou cerca de US$ 5 milhões – uma fortuna para os padrões de Godard e da própria nouvelle vague. E nada menos que 20% desse valor foi para o cachê de Brigitte Bardot.
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Em 2004, o Top Cine foi palco da esvaziada “cabine” (pré-estreia para jornalistas) de Nossa Música, o novo de Godard. Entre cinco ou seis gatos-pingados, além de mim, estava o veterano Inácio Araujo, ótimo crítico da Folha de S.Paulo. Perguntei se ele já sabia algo a respeito do filme. O Inácio brincou: “Eu só sei que o Godard ficou muito chato depois que levou um pé na bunda da Anna Karina”. Nos anos 1950, Anna Karina estampou um anúncio de sabonete. A jovem modelo dinamarquesa, ainda adolescente, aparecia dentro de uma banheira, aparentemente nua – depois, décadas depois, ela contaria que vestia um maiô. Godard, dez anos mais velho, ficou tão fascinado por sua beleza e expressividade que a convidou para fazer uma ponta em seu primeiro longa-metragem, Acossado. Ela recusou, mas…
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Tão logo acabaram as filmagens de Acossado, Godard passou a rodar O Pequeno Soldado, que tem como pano de fundo a Guerra da Argélia. Desta vez, como não tinha de ficar nua em cena, Anna Karina aceitou ser a protagonista. Ela interpreta uma militante da Frente de Libertação Nacional que acoberta um desertor da guerra – e paga caro por isso. Num dia, em meios à produção de O Pequeno Soldado, Godard ligou para Anna Karina e lhe pediu que o encontrasse à meia-noite no Café Prez.
Numa entrevista recente, ela resumiu o encontro: “Eu tinha um relacionamento com outro homem, mas não pude evitar – não consegui me afastar dele (Godard). Eu estava totalmente fascinada”. Unidos na vida e na arte, ficaram casados até 1967 e, juntos, fizeram oito filmes. Divorciaram-se, segundo Anna, porque Godard saía para comprar cigarro, mas demorava três semanas para voltar, sem avisá-la de nada. Quando a atriz morreu, em 2019, eles estavam sem se ver fazia mais de 20 anos.
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Em Um Bando à Parte, Anna Karina é a professora de inglês manipulada por dois larápios. A certa altura, sentados à mesa de um restaurante, eles imitam Chaplin e sua genial dança dos pães em Em Busca do Ouro. Na sequência, vão à pista e improvisam uma hilária coreografia. A cena e o filme não fizeram tanto sucesso, mas serviram de inspiração para Quentin Tarantino criar, em Pulp Fiction, a dança – horrível e, por isso, divertida – entre John Travolta e Uma Thurman no Jack Rabbit Slim’s. “Minhas cenas musicais favoritas sempre estiveram no Godard. Elas simplesmente surgem do nada”, contou Tarantino – que também batizou sua produtora com o título original do filme, Band à Part.
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Um faroeste de John Ford, Rastros de Ódio, levou Godard às lágrimas numa sala de cinema da França. Foi em 1956, quando o jovem Godard ainda estava às voltas com a crítica de filmes na insuperável Cahiers du Cinéma. A saga de Ethan Edwards (John Wayne) à procura da sobrinha Debbie (Natalie Wood), a quem jurou matar, termina com umas das mais belas e surpreendentes reviravoltas na história do cinema. Godard voltou a ver o filme por diversas vezes e, segundo ele, sempre chorou – “menos pela comoção da cena final, mais pela genialidade de Ford”.
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Godard é um desses cineastas que gostam de começar os filmes com cenas ou frases marcantes. Uma das melhores citações está no comecinho de O Pequeno Soldado, quando o desertor francês – que sonhava em fugir para o Brasil – reflete: “Até aqui, a minha história foi simples – a história de um sujeito sem ideal. E amanhã?”.
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O próprio Godard é um excelente frasista. Uma de suas máximas diz que “todo filme tem começo, meio e fim – não necessariamente nesta ordem”. Outra: “Para fazer um filme, bastam uma garota e uma arma”.
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Em 1988, após uma série de vistorias de fachada, o prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, mandou interditar oito cinemas paulistanos por supostas “falhas de segurança”. O motivo real era outro: as oito salas exibiam o herético A Última Tentação de Cristo, o filme de Martin Scorsese que, segundo Jânio, “desrespeitava a fé cristã”. Dado a arroubos autoritários, Jânio foi acusado de ressuscitar a censura em plena redemocratização. Em sua defesa, ele lembrou que apenas dois anos antes, mesmo com a ditadura militar sepultada, o presidente José Sarney proibiu a exibição de um filme de Godard em todo o território nacional.
Je Vous Salue, Marie foi censurado no começo de 1986 “para preservar a moral”. O porta-voz da Presidência admitiu que Sarney sequer havia visto o filme, mas “atendeu a um apelo da Igreja”. Naquele ano, numa espécie de “trote cultural”, alunos da PUC-SP decidiram mostrar o filme para os “calouros” da universidade – que, por sinal, é católica. A sessão clandestina já tinha passado da metade quando a Polícia Federal invadiu a PUC, disparou tiros para o alto, agrediu estudantes e recolheu as cópias do filme.
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Com uma filmografia de mais de 120 obras – entre curtas e longas-metragens –, Jean-Luc Godard, o maior dos cineastas vivos, completa hoje (3/12) 90 anos. “Visconti é a maneira clássica de fazer cinema revolucionário. Losey, a maneira revolucionária de fazer cinema clássico. E Godard, a maneira revolucionária de fazer cinema revolucionário”, sintetizou Jefferson Barros. Para Serge Daney, “o cinema de Godard é uma dolorosa meditação sobre o tema da restituição – ou melhor, da reparação”. E, para concluir à moda Godard, podemos evocar Bernardo Bertolucci:
“Eu me deixaria matar – ou até mataria alguém – para filmar um único plano como Jean-Luc Godard”.
por André Cintra, Jornalista | Texto em português do Brasil
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