Fui para a Esplanada dos Ministérios quando começaram a circular as notícias da invasão dos bolsonaristas. Não por orientação do Brasil27 mas por ordem do meu instinto de repórter: “se estão tentando o golpe, preciso estar lá”. Nas duas horas em que fiquei ali, no meio dos golpistas, fiz três entradas ao vivo e gravei alguns vídeos para serem usados depois. Neste tempo, sofri duas agressões violentas, sendo a última uma verdadeira ameaça de linchamento, da qual fui salva por uma bolsonarista que me conhece.
Quando finalmente alcancei a barreira policial na altura do Itamaraty, tomando-me por mais uma terrorista, um policial me apontou o fuzil para que eu recuasse, e fiquei entre dois fogos. Atrás estava o grupo de bolsonaristas que me perseguia. Achei que devia compartilhar esse relato para que não reste dúvida sobre a natureza dos fatos deste domingo: foi uma tentativa de assalto terrorista à democracia.
Quando cheguei, muitos bolsonaristas já subiam a Esplanada, porém a massa volumosa estava lá embaixo, onde haviam montado muitas barracas em poucas horas. Comecei a tentar entrevistar os que subiam, perguntando como a ação fora planejada, o que pretendiam etc. Não escaravam o celular mas diziam impropérios enquanto andavam: vamos tirar o criminoso, o ladrão do Lula do Planalto, não vamos recuar enquanto não for anulada a eleição fraudada. Coisas assim. Tentaram me tomar o celular mais de uma vez mas escapei.
Abaixo da Catedral um grupo maior se irritou com a abordagem, dizendo que eu era uma petista safada disfarçada de jornalista, gravando imagens deles para entregar à polícia. Um deles começou a gritar, me segurando pelo braço: apague minha imagem ou não sairá daqui. Os outros fizeram coro: tinha que apagar todos os videos se quisesse sair. Eu estava cercada. “Está bem, vou pagar”, concordei. “Abra a galeria”, o grandão ordenou. Abri, havia cinco videos. Ele mesmo começou a clicar no botão de apagar, deletou todos. “Agora abra a lixeira”. E como eu não sabia abrir a lixeira, deram uma vaia dizendo que isso era a prova de que eu petista a serviço da polícia. Onde já se viu jornalista que não sabe usar o celular direito! Eu não sabia mesmo mas ele gritava: “Abra a lixeira”. Por fim ele mesmo clicou em algum lugar, apareceram os cinco vídeos e ele os deletou. Deixaram que eu seguisse com um aviso: que não gravasse mais porque iriam me pegar.
Nesta altura, não havia qualquer carro ou equipe de imprensa na Esplanada. E nem um único policial. O espaço estava inteiramente dominado por eles. As forças de segurança estavam lá em baixo, entre o Congresso, o Planalto e o Supremo. Leonardo Attuch escreveu mandando que eu fosse embora, estava perigoso. Insisti que iria tentar entrar na Praça dos Três Poderes, se a polícia deixasse, para ver os estragos.
Quando me aproximei da barreira policial, um grupo estava me seguindo porque eu os havia filmado pouco antes. Do meio do asfalto gritei para os policiais que eu era jornalista e queria falar com eles. A resposta foi o fuzil apontado. Joguei a bolsa no chão e levantei as mãos. Recuar seria cair no meio do pelotão que me perseguia. O do fuzil, sempre me apontando, mandou que o grupo recuasse e eu também. O ar estava irrespirável, haviam soltado bombas de gás lacrimogênio e minha rinite respondeu no ato. Bombas continuavam explodindo e os helicópteros sobrevoando a Praça dos Três Poderes. Recuei andando meio de lado para o Ministério da Saúde, onde havia apenas uns gatos pingados.
Dali avistei a multidão que subia em direção à Rodoviária, do outro lado da Esplanada. Estava começando a evacuação. Evitando o acampamento, cheguei ao lado direito e fiz uma entrada ao vivo, mostrando a massa que se retirava, embora houvesse ainda muita gente no meio do gramado, que à noite fica muito mal iluminado.
Em algum momento da entrada eu dizia ao Rodrigo Viana que o grande número de pessoas era prova de que a manifestação golpista fora planejada, e não fruto de convocação espontânea pelas redes sociais, como estavam dizendo. Diziam também que a quebradeira fora obra de petistas infiltrados e mascarados. Tenho um vídeo em que dizem isso.
“Pega ela, está falando em manifestação golpista”, foi o que ouvi antes de me ver cercada por uma turba irada que tentava me tomar o celular, a esta altura já na bolsa. “É do 247”, disse uma voz feminina. Já me seguravam pelos dois braços e me sacudiam dizendo que iam me ensinar a fazer jornalismo.
Eu tentava dizer o óbvio, que estava apenas fazendo meu trabalho, mas acho que o terror me emudeceu. Foi quando uma mulher cujo nome vou preservar falou ao grupo que me conhecia, que era minha vizinha, que se responsabilizava pela minha retirada, e que ela mesma ira reter meu celular. Ela parecia ter o respeito deles, fou ouvida. Me abraçou e foi me puxando dali. Levou-me até o meio do gramado da Esplanada e disse para eu ir embora mesmo, antes que algo pior acontecesse. Ela de fato me conhece do Congresso, onde é funcionária. Agradeci imensamente pela ajuda, vejam que situação! Ela também estava comovida, pareceu-me. E então fui-me embora mesmo. O carro estava bem longe, atrás do Museu da República, e no trajeto não gravei mais nada. Fiz apenas uma foto dolorosa, da Categral iluminada e cercada por policiais de negro, cena que antes eu não vira.
Estou contando isso porque nunca estive tão dentro de uma correnteza de ódio como neste domingo. Nem mesmo na ditadura, nas tantas manifestações de que participei, com a polícia nos reprimindo. Mas uma coisa é enfrentar a violência do aparelho policial a serviço de um regime autoritário. Outra era enfrentar pessoas comuns, civis raivosos vociferando, com quem era impossível dialogar.
O que vi e ouvi naquelas horas não deixa dúvidas: Foi uma tentativa de golpe, perpetrada por terroristas, ainda que alguns possam ser considerados inocentes úteis. Tenho ainda alguns vídeos, que podem servir ao reconhecimento de pessoas mas sei que o mais importante é chegar aos mentores, aos financiadores, ao que se escondem atrás destas pessoas manipuladas, cujo nível cognitivo foi rebaixado ao de uma aranha, para atacarem a democracia.
Em mais de um momento, na TV247, defendi que o acampamento do QG do Exército fosse desmontado sem bombas e sem uso de cassetetes. Agora defendo a repressão, com uso da lei antiterrorismo, em defesa do Estado Democrático de Direito.
O 6 de janeiro americano aqui aconteceu no dia 8, mas aqui também foi derrotado.
Texto original em português do Brasil