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João de Sousa

Sábado, Novembro 2, 2024

Gorbatchev, Macron e os 23000 cientistas

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A 4 de Novembro, Mikhail Gorbatchev declara em entrevista que o mundo enfrenta um perigo colossal de holocausto nuclear; no dia seguinte um grupo de cientistas (a subscrição fechou nos 23000) publica um manifesto identificando o perigo como provindo do ‘clima’; e no dia subsequente (dia 6) o Presidente da República francês dá uma entrevista ao semanário ‘Economist’ (publicada dia 7) que não anunciando o fim do mundo anuncia o desmoronar do principal pilar da defesa ocidental: ‘a OTAN está em morte cerebral’.

É caso para dizer, três dias, três catástrofes previstas ao gosto de quase todos!

  1. Macron a Leste

Começando pela última das profecias, dando o desconto de se tratar de uma entrevista profundamente editada e de a frase puxada para título (como sempre acontece) ser a mais bombástica, não necessariamente a que melhor expressa a totalidade da mensagem, penso que é a de quem se encontra menos em fase com a realidade que nos rodeia.

A invasão turca do Nordeste da Síria acentua tudo o que já era visível na invasão turca do Noroeste sírio (Afrin) ocorrida há já mais de um ano. Com alguma capacidade analítica e bom senso era possível entender o que se preparava desde que a Irmandade Muçulmana iniciou a conquista da Turquia através de Erdogan há mais de 15 anos.

Que a elite ocidental que domina a Academia, a Imprensa, a Administração e a Política só agora se pareça dar conta da evidência, não sendo prova da sua ‘morte cerebral’, é seguramente sinal da sua fragilidade intelectual e acima de tudo, de como o ‘consenso intelectual’ raramente é um bom guia para o que quer que seja.

Como diz Sven Biscop (o principal dirigente do principal think-tank de política internacional belga, com quem nem sempre concordo mas que aqui me parece ter acertado em cheio), a propósito da débacle turco-síria, quando a Europa não tem estratégia o remédio é dizer que a culpa é de Trump.

Se isso é assim com a Europa, é ainda mais assim com a França que não conseguiu ultrapassar a fantasia gaulista de uma França capaz de liderar a Europa, por sua vez capaz de liderar o mundo, o que é apenas irrealismo, mas, pior que isso, que vê nos seus aliados os que a impedem de atingir os seus legítimos interesses, o que é sintoma de psicose.

Para além das previsíveis e efusivas felicitações que recebeu do Kremlin e do coice que recebeu de Berlim – Angela Merkel não poderia dispensar a magnífica ocasião de mostrar que tem mais juízo que o seu vizinho gaulês – Emmanuel Macron volta a mostrar que está a Leste das análises e dos debates essenciais, e que começam, precisamente, com o nuclear.

  1. A lição de Gorbatchev

Tenho por Gorbatchev uma imensa estima, que creio deveria ser comum a todos os amantes da vida e da paz. Creio mesmo que foi ele o elemento decisivo que ditou o fim da ‘cortina de ferro’ e que infelizmente não teve um Ocidente à sua altura para evitar que o fim do comunismo se traduzisse no Caos e na ressurreição de um novo sovietismo.

Tendo naturalmente um ponto de vista russo, este aviso de Gorbatchev é pleno de oportunidade e de bom senso ao explicar o que me parece deveria ser evidente para as elites, incluindo a científica: a humanidade está confrontada a um perigo nuclear eminente, perigo que pode vir também de personagens não estatais, como Gorbatchev indica na sua entrevista, mas que espreita de muitas formas, nomeadamente das derivas intencionais ou não intencionais da utilização civil da cisão nuclear.

 

  1. Os absurdos do manifesto

O clima do nosso planeta é algo de complexo e cujos padrões de variação podem ser influenciados significativamente pela humanidade, nomeadamente pelas profundas alterações que esta tem provocado no solo, no ar, na água e acima de tudo no subsolo, pondo em circulação em poucos anos matérias fósseis acumuladas durante milhões de anos e concentrando e transformando outras – como os minerais radioactivos – de formas extraordinariamente perigosas.

Neste contexto há duas observações que qualquer análise científica tem de começar por ter em conta. A primeira é a de que antes de esses impactos se manifestarem no clima eles se fazem sentir de forma mais visível e óbvia na biodiversidade, nos ecossistemas, nas florestas, nos Oceanos ou na desertificação. A segunda é a de que sendo verdade que existe consenso (embora não unanimidade) quanto aos impactos indirectos dessa acção humana em alterações climáticas, não existe qualquer espécie de consenso quanto à quantificação desse impacto, e menos ainda quanto à sua projecção no futuro.

É inaceitável não dizer uma única palavra sobre os riscos de catástrofe nuclear e, pelo contrário, listar a energia nuclear como forma mais limpa e segura para as pessoas e o ambiente.

Colocar o problema como decorrente do ‘consumo excessivo do rico estilo de vida’ é colocar-se em oposição à vasta maioria da humanidade Pregar a austeridade em nome da ecologia é contraproducente para o ambiente. O que precisamos é de mostrar como se pode ter um riquíssimo estilo de vida, mais saudável, mais feliz e em harmonia com a natureza.

Esconder que as energias renováveis são mais eficazes do que a nuclear e outras não renováveis, pode ser útil para o clube dos ‘papa subsídios’ à conta das renováveis mas é devastador para este domínio essencial da preservação ambiental.

Não distinguir entre um ciclo de vida sustentável, que pode incluir pecuária, e a pecuária intensiva parece-me cientificamente errado; criar uma nova designação de ‘poluentes de curta duração’ para designar o metano e outras matérias, parece-me não ter sentido, tanto mais que o óxido nitroso N2O que aparece como cada vez mais importante nos recentes trabalhos sobre gases com efeito de estufa em consociação com o metano tem um ciclo de vida maior do que o dióxido de carbono, o qual, conviria esclarecer, é um gás essencial à vida.

Acima de tudo, ao inserir como um novo domínio entre os seis selecionados o da necessidade de controlar a população, o manifesto dá um passo extremamente perigoso na direcção do eco-fascismo, doutrina que se apresentou ao mundo com o atentado terrorista da Nova Zelândia.

O liberalismo e ecologismo reacionários no mundo ocidental têm como ponto de partida Malthus e a sua pretensa lei segundo a qual a população tendia a crescer de forma geométrica enquanto os recursos cresciam apenas de forma aritmética.

Em nome desta pretensa ciência, Malthus propôs que se deixassem morrer os pobres à fome. A mensagem pode apresentar-se hoje de forma mais edulcorada, mas a sua essência não mudou.

É uma entrada com pezinhos de lã para o ressuscitar das mais negras doutrinas da humanidade, afirmando-se como verdade científica única, recorrendo à manipulação infantil e outras formas desonestas de debate intelectual.

É preciso fazer-lhes frente. Creio que Gorbatchev é um símbolo do combate que devemos travar.


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