A sociedade brasileira é locupletada diuturnamente com propostas, ao serviço de interesses diferentes e muitas vezes divergentes, compatíveis muitas vezes com a “usina de crises” com que o presidente da Câmara dos Deputados chamou o atual governo. Nascido na base de apoio do governo, ou dos filhos da base, o Senado Federal registrou há uma semana (13/06/2019) o PL 3589/2019, de autoria do senador Flávio Bolsonaro, transformando os medicamentos em meros objetos de consumo. Alterando a Lei 5.791/1973, o referido projeto de lei “permite a dispensação de medicamentos em todos os estabelecimentos comerciais”, incluindo estabelecimentos hoteleiros e similares, se referindo a “medicamentos anódinos”, não sujeitos a prescrição médica.
Na contramão de toda a orientação que a Saúde Global vem discutindo e que teve pontos altos na recente Assembleia Mundial da Saúde no último mês de maio em Genebra, com expressiva participação de delegação do Brasil, propõe-se agora no Brasil que os medicamentos sejam tratados como bens de consumo, como mercadorias, como quinquilharia a venda em qualquer estabelecimento comercial, como se compra arroz, feijão, legumes ou pão.
Os grandes foros mundiais, incluindo a Organização Mundial da Saúde e as Nações Unidas (ONU), vem abordando a questão do acesso a medicamentos no contexto de direitos humanos fundamentais e na necessidade de atingir populações negligenciadas e vulneráveis. Essas ações estão contextualizadas na Agenda 2030 e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que todos os países membros da ONU assinaram e que inclui o compromisso de implementar ações com o objetivo de não deixar ninguém para trás.
A questão do acesso a medicamentos tem estado de maneira permanente nas agendas das organizações multilaterais, dos governos, dos organismos não governamentais, de uma maneira geral nos diálogos da nossa sociedade. Aprendemos muito no Brasil no passado recente com a pandemia de HIV/Aids e a resposta brasileira, com a produção local de ARVs (antirretrovirais), com o fortalecimento da produção pública, com a competição genérica e com a possibilidade de ter emitido uma licença compulsória em 2007.
O Brasil enfrenta ainda o “imbróglio jurídico-político” com o tratamento da Hepatite C, o desenvolvimento e produção nacional do Sofosbuvir e a impossibilidade de fornecer, a preços mais baixos, ao SUS, pela litigação jurídica de empresa de capital transnacional e que se sente no direito de continuar fornecendo o produto com alegação monopólica.
Temos muito a aprender ainda nas negociações em curso para a discussão do Tratado de Livre Comércio do Mercosul com a União Europeia, em que pressionam nossos governos com cláusulas TRIPS-plus que nossa soberania e nossos interesses teriam a obrigação de rejeitar.
O que significaria para o Brasil a venda livre de medicamentos? Significaria dispensar o papel dos profissionais de saúde, em especial do farmacêutico, das questões relacionadas com o acesso a esses medicamentos.
Significaria renunciar aos ensinamentos das nossas universidades, a renunciar a reconhecer nossas políticas públicas (Política Nacional de Medicamentos e Política Nacional de Assistência Farmacêutica) e, em especial, não reconhecer a luta permanentemente que temos tido para reconhecer que as farmácias, além de estabelecimentos de saúde, muitas vezes representam a porta de entrada do cidadão no sistema de saúde, nosso SUS, modelo para o mundo e que iniciativas governamentais atuais insistem em desconstruir ou até em incluir nas reformas ultra neoliberais que fortalecem o Capital Financeiro e a privatização e desmerecem o cidadão.
Palavras de alerta: vamos respeitar nossa Constituição! O mundo está de olho no Brasil!
por Jorge Bermudez e Ronald Ferreira dos Santos | Texto original em português do Brasil
- Jorge Bermudez, Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz)
- Ronald Ferreira dos Santos, Presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar)
Exclusivo Editorial Rádio Peão Brasil / Tornado
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