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João de Sousa

Sábado, Novembro 2, 2024

Gracias, Mercedes

Graças a la vida, que me deu tanto, Mercedes, me deu dois olhos que quando os abro distingo bem o […]

Graças a la vida, que me deu tanto, Mercedes, me deu dois olhos que quando os abro distingo bem o bem do que não é bem, Mercedes, e do alto do céu estrelado da América Latina, nas multidões a mulher que eu amo, Mercedes.

Gracias a la vida, que me deu tanto, me deu ouvido para te ouvir, Mercedes, naquele primeiro LP que comprei na Tok Discos, tu interpretando canções de Atahualpa Yupanqui, com toda tua extensão, noites e dias, grilos e canários, martírios, turbinas, ladridos, chubascos. E tua voz tão terna, minha bem amada Mercedes, a índia vindo de San Miguel de Tucumã para os ouvidos do adolescente chegado do sertão dos Inhamuns cearense.

Gracias a la vida, que me deu tanto, Mercedes, me deu o som e o abecedário para ler os hermanos de tua língua, Neruda, Cortázar, Alfonsina, Gelman, Cardenal, Lorca, Galeano, com eles as palavras que penso e declaro mãe, amigo, irmão e luz alumbrando a rota da alma do que estou amando nos livros de minha vida, Mercedes.

Gracias a la vida, que me deu tanto, me deu a marcha de meus pés cansados, e com eles andei cidades e charcos, praias e desertos, montanhas e planos, e tua casa em cada música, tua rua em cada faixa, e teu pátio em cada encarte com tuas fotos tocando o bombo leguero, Mercedes.

Gracias a la vida, que me deu tanto, Mercedes, me deu o coração que agita teu marco, quando olho o fruto do cérebro humano, quando olho o bom tão longe do mau, os revolucionários tão longe dos fascistas, quando olho o fundo de teus olhos claros, Mercedes, e vejo tantas mulheres, de Frida Khalo a Pagu, de Domitila Chúngara a Dona Elizabeth Teixeira, de Célia Sánchez a Maria Bonita, da Comandanta Ramona às avós da Praça de Maio.

Gracias a la vida, que me deu tanto, me deu o riso para o meu filho e me deu o pranto para a saudade de meu pai, assim eu distingo dita de quebranto, os dois materiais que formam teu canto, Mercedes, e o teu canto que é o mesmo canto, e o canto de todos que é teu próprio canto, luta, resistência e a utopia que Fernando Birri pregava e nos faz caminhar, sempre.

Gracias a la vida, que me deu tanto, Mercedes, eu que tanto ouvi teus discos na vitrola 3 em 1, nas fitas BASF a caminho da faculdade, que tanto resisti trabalhando duramente contra os anos de chumbo no Brasil, ergui a bandeira das Diretas Já, votei no operário em construção e comemorei ouvindo-te, ouvindo-te, ouvindo-te, Mercedes Sosa.

Gracias também a ti, Violeta Parra, por tua canção, que nos ha dado tanto, ceramista de notas musicais campesinas.

Duerme, duerme, negrita Mercedes, em teus 85 anos de nascimento que hoje comemoro ouvindo-te no chiado do vinil em meu coração.

 

Brasil

Na foto acima, de Orlando Brito, a cantora argentina em show no Teatro Nacional de Brasilia, 1982. Naquele ano, com o fim do AI-5 no período de Geisel e a Anistia com Figueiredo, estava em curso o processo de abertura política. Mercedes Sosa voltava do exílio na Europa e decidiu passar pelo Brasil. Ao final da apresentação, diante uma plateia que aplaudia de pé, disse:

– Amigos do Brasil, trago em minha voz a luta pela liberdade.


por Nirton Venâncio, Cineasta, roteirista, poeta e professor de literatura e cinema   | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

 

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