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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Graciliano Ramos actualizado

Urariano Mota, no Recife
Urariano Mota, no Recife
Escritor e colunista da Boitempo e do Direto da Redação. Colabora também com Vermelho, Carta Capital e Fórum.

No mais recente 20 de março, a lembrança do dia da morte de Graciliano Ramos deu margem à repetição de erros sobre o escritor na imprensa. Isso, claro, nos espaços mais cultos da mídia, porque no geral o escritor não foi sequer lembrado.

Então vieram aquelas clássicas visões do genial mestre em que se destacam a secura do seu estilo, o enxuto, só ossos, porque a sua obra devia ser reflexo imediato de Vidas Secas. E desse livro, que tomam como romance, logo o autor se torna um Fabiano a caminhar em paisagem árida, espinhosa de mandacaru.

No mesmo dia 20, quando se noticiou o lançamento do livro “Um escritor na capela”, que faz uma homenagem ao escritor comunista que sofreu prisão no Estado Novo, partiu-se para a menção, de passagem e rápida, de Memórias do Cárcere. Ora, todas as vezes em que se fala sobre literatura na mídia, e sobre Graciliano Ramos em particular, eu me torno mais que cinco sentidos de atenção.

E me digo: “alerta, aí vêm topadas e tapados”. E mais uma vez não me frustraram. Com efeito, num salto acrobático foram de Vidas Secas a Memórias do Cárcere. E como se nada dissessem, falaram que a obra máxima de memórias políticas no Brasil foi publicada na primeira edição “em dois volumes”. Uma luz vermelha se acendeu em mim, “aí tem – o que é isso?”.

Então da sala onde eu estava me vieram à lembrança os volumes da primeiríssima edição da José Olympio, que comprei num golpe de sorte no sebo, desprezados como papel velho. Fui então até a estante e alisei feliz os livros de capa amarela. Ali estavam “os dois” isto é, o Graciliano real e o da mídia.

Na manhã seguinte, caí na pesquisa. Eu queria saber: de onde vinha semelhante barbaridade? E descobri que a fonte principal era a Wikipédia. Essa é a enciclopédia virtual do jornalismo preguiçoso, que por não ter informação ou experiência dela se vale na prensa e na pressa. Lá estava: “Memórias do Cárcere é um livro de memórias de Graciliano Ramos, publicado postumamente em dois volumes” (Destaque meu) Então me deixei ler sem pressa, por preguiça de mudar de fonte, a mesma página. E pude ver, entre outras coisas, esta difamação:

“Diz o crítico Wilson Martins, a respeito da censura que o livro sofreu, adulterando o original do autor para sempre: «Houve também na história dessas relações, a grande crise provocada por Memórias do Cárcere. Sabia-se que o PCB exerceu forte pressão sobre a família de Graciliano Ramos para impedir-lhe a publicação, acabando por aceitá-la à custa de cortes textuais e correções cuja verdadeira extensão jamais saberemos. Nas idas e vindas entre a família e os censores do Partido, resultaram, pelo menos, três ‘originais’, datilografados e redatilografados ao sabor das exigências impostas. Supõe-se que o último deles recebeu o imprimatur canônico, acontecendo, apenas, que, na confusão inevitável de tantos ‘originais’, as páginas escolhidas para ilustrar os volumes diferiam sensivelmente das impressas, suscitando dúvidas quanto à respectiva autenticidade’.
—Wilson Martins, in: Gazeta do Povo»

Ainda segundo o crítico, fez publicar a denúncia no jornal O Estado de S. Paulo, recebendo então acerbas críticas do PCB, o que para ele era a comprovação da veracidade das alterações feitas na obra que, após reveladas, haviam incomodado o editor, José Olympio.”

De fato, o crítico direitista escreveu o que está acima. Mas integrá-lo como única interpretação para obra e escritor tão fundamentais é, no mínimo, cumplicidade com a sua visão de mundo. E como sei da extensão do erro que se propaga no jornalismo cuja única fonte é a Wikipédia, mudei e acrescentei no verbete Memórias do Cárcere.

“Memórias do Cárcere é um livro de memórias de Graciliano Ramos, publicado postumamente, em setembro de 1953, em quatro volumes…
No entanto, a viúva do escritor, Heloísa Ramos, e os filhos de Graciliano, Ricardo e Clara, mais tarde confirmaram a autenticidade do livro publicado com o texto original. Ver a biografia “O velho Graça – uma biografia de Graciliano Ramos”, de Dênis de Moraes»

Até à publicação deste artigo, o verbete Memórias do Cárcere ainda estava na informação atualizada acima. De boa consciência, creio não haver editor à direita que possa contestar os depoimentos da viúva e filhos do escritor, assim como destruir a existência física dos quatro volumes da belíssima primeira edição da José Olympio.

E para melhor compreensão da verdade da obra, divulgo a seguir alguns parágrafos de Memórias do Cárcere, do livro que tem o subtítulo de Pavilhão dos Primários. Dele copio paciente o trecho que vai da página 171 à 174, da primeira edição:

 

«O porão do navio Campos era muito diverso. Justapuseram-se ali duas sociedades inconciliáveis: uma afeita às ideias e aos costumes regulares, mais ou menos confessáveis e permitidos; outra incursa em velhas censuras, em desprezos e temores públicos, dirigindo-se por normas ignoradas cá fora, regras absurdas.

A primeira, centena e meia de políticos, aglomerava-se à entrada, em silencioso assombro, a atividade morta; a segunda, quatrocentos ou quinhentos malandros, vagabundos, ladrões, refugo tumultuoso, fervilhava e zumbia naquele esgoto social como um formigueiro assanhado.

O número superior e adaptação completa ao meio tinham suprimido nos últimos qualquer vestígio de constrangimento ou pejo: mexiam-se à vontade, expondo os seus costumes, horríveis mazelas, não parecendo sentir a abjeção… Haviam organizado uma espécie de governo. A polícia, lá de cima, incumbira disso Moleque Quatro, indivíduo reimoso, forte na capoeira. Esse poder se exercia discricionário, simultaneamente justiça e execução, regido por leis próprias, reconhecidas e inapeláveis.

No movimento e na balbúrdia realizou-se um processo. Moleque Quatro nomeara alguns assessores: mantinham, com ameaças e rasteiras, a ordem singular das cloacas humanas e, em caso de necessidade, incorporavam-se em tribunal.

Essa guarda temerosa reconheceu um acaguete a dissimular-se na multidão, pegou-o, levou-o rápida ao chefe e logo se transformou em júri. O acaguete é um delator – e para ele os criminosos são inexoráveis. O descoberto naquela noite veio trêmulo e mudo, com duras contas a agravar-se em depoimentos medonhos de testemunhas furiosas, num instante convertidos num libelo coletivo. Nenhuma defesa. Ouvidas as culpas, Moleque Quatro refletiu, coçou a carapinha e decidiu:

– Vai morrer.

No estranho julgamento o carro andava diante dos bois: proferia-se a sentença e depois os jurados se manifestariam; confirmavam-na ou recusavam-na, mas não seria fácil absolverem um sujeito sumariamente condenado, esmagado por acusações tremendas. Aceitaram a decisão, unânimes:

– Vai morrer.

Nesse ponto o infeliz, aturdido, pareceu despertar. Caiu de joelhos, balbuciando súplicas abjetas:

– Seu Quatro, pelo amor de Deus. Eu sou casado, sustento família. Tenha pena de meus filhos, seu Quatro.

O negro ouvia impassível:

– Não tem jeito não. Vai morrer.

Causava assombro a ideia de que fosse possível realizar-se ali, perto de homens fardados e armados, uma execução. Provavelmente queriam apenas intimidar o desgraçado. A firmeza dos juízes, a curiosidade ansiosa da assistência, as covardes lamúrias do réu, desviavam essa conjectura.

A gente da superfície via a máquina subterrânea a funcionar – e arrepiava-se. Imaginara a existência dela, uma existência vaga, apanhada em jornais e em livros. A realidade não tinha verossimilhança. Estava, porém, a entrar pelos olhos e pelos ouvidos. Mãos a torcer-se no desespero e o rogo choroso:

– Tenha pena de meus filhos, seu Quatro.

Esboçou-se uma horrível piedade na cara do negro. E veio comutação da pena:

– Está bem. Não vai morrer. Vai sofrer trinta enrabações.

É medonho escrever isso, ofender pudicícias visuais, mas realmente não acho meio de transmitir com decência a terrível passagem do relatório de Chermont. A nova sentença foi aprovada com alvoroço. Desfez-se a assembleia. E a um canto, cercado por exigências numerosas, trinta vezes o paciente serviu de mulher. Não era o único: outros já se estavam dedicando a esse exercício. Um político esbarrou num casal, não conteve exclamações de surpresa.

– É besta? exclamou o passivo entortando o pescoço, erguendo a cabeça, indignado. Nunca viu homem tomar …

As incursões naqueles domínios tinham perigos, sujeitavam pessoas incautas a ofensas graves e equívocos vergonhosos. Notando isso, alguns imprudentes recuaram num sobressalto, foram agrupar-se junto à escada, na luz que vinha da escotilha. Mas não se acharam em segurança; rondas agoureiras mostravam claro o intuito de subordiná-los à regra ordinária; com certeza seriam forçados a defender-se em luta física. Não chegaram às vias de fato. Percebendo a situação, Moleque Quatro exibiu prestígio e força, amorteceu os intentos agressivos com diversos rabos de arraia:

– Em comuna aqui ninguém toca.

Alongou o braço, indicou uma linha indecisa, a limitar os dois campos:

– Este pedaço é dos comunas, o resto é nosso. Aqui ninguém bole com eles. Agora se algum passar pra lá, não garanto nada.

A imaginária fronteira impediu atritos; o esboço de rixa extinguiu-se, e durante a viagem as duas facções detiveram-se ali, a alguns centímetros uma da outra, como se um muro as separasse. As mais altas autoridades lá de cima não teriam meio de fazer-se respeitar assim».

Assim foi, assim é o nosso Graciliano Ramos, atualizado nesta semana do aniversário do seu falecimento.

O autor escreve em português do Brasil

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