O poder político reconhecia, assim, a imperiosa necessidade de regular um desvairado mundo das finanças, pondo cobro à influência determinante do sistema bancário americano no colapso da economia real e co-responsabilizando-o, dessa forma, pela profunda recessão em que o país mergulhara.
Com a aprovação da GS, as actividades desenvolvidas pelos Bancos comerciais e as operadas pelos Bancos de investimento ficam separadas por uma cerca legal, vedando-se o acesso a operações no segmento da banca de investimentos a Bancos que possuam natureza comercial, particularmente no que se refere a operações em que intervenham clientes do segmento retalhista. O dinheiro dos depositantes-clientes destes Bancos, até então maltratado pela ausência de regulação, está agora, se não em porto seguro, bem mais protegido.
O poder político americano escrevia uma página na história, apontando o dedo a quem, indubitavelmente, se revelara um dos grandes culpados por uma crise à escala planetária: ao operarem indiscriminadamente em ambos os segmentos da actividade bancária, utilizando o dinheiro dos clientes-depositantes para financiar actividades de risco, alocando fundos que se queriam seguros a actividades de cariz especulativo, os Bancos americanos davam a machadada final numa economia já em cuidados paliativos, depois de uma guerra mundial que devastara uma boa parte da Europa – o principal mercado exportador para as empresas norte-americanas.
A ganância, característica proeminente desse valioso activo chamado “capital humano” e tão apreciada nas terras do Uncle Sam, acaba, assim, também ela, por ver o seu valor de mercado descer consideravelmente, não sem antes deixar um rasto de destruição sem precedentes na história das economias ocidentais.
1999
Em plena presidência Clinton, a Câmara dos Representantes (de maioria republicana) aprova a lei de Graham-Leach-Bliley (GLB), revogando o GS que vigorara durante 66 anos (reconheça-se no entanto que, durante este longo período, nem sempre as coisas correram bem: o lobby da finança em Washington, ao serviço de Wall Street e sustentado em batalhões de proeminentes advogados sempre disponíveis para ler na lei o que ela não diz, não raras vezes foi conseguindo impor a interpretação que lhe convinha, aqui e ali recorrendo à constituição americana e suas emendas e, na verdade, a tudo o que fosse necessário para que os seus clientes pudessem expandir o negócio sem grandes restrições.)
Com a aprovação da nova lei, os Bancos comerciais podiam agora desenvolver toda e qualquer actividade bancária: da mera captação de depósitos à concessão de crédito, passando pelo financiamento de – e investimento em – qualquer activo financeiro, fosse um activo de rendimento fixo, acções e, não menos relevantes, os “novos rapazes no bloco”, designados por activos derivados, constituídos “arguidos” a partir do momento (1973) em que Black e Scholes descobrem a fórmula que “precifica”, de forma científica, as designadas opções financeiras.
Foi como se um mundo novinho em folha se tivesse gerado, beneficiando todos aqueles para quem o negócio bancário se revelava pouco imaginativo e tão previsível ao ponto de suscitar uma sonolência mortífera. Os dinheiros dos depositantes (com a excepção de montantes até USD 250.000, que se encontram garantidos pelo organismo regulador federal) estava disponível para o que fosse necessário.
A ganância reganhava o seu vigor alimentando aqueles que, ao arquitectarem produtos de uma complexidade matemática considerável, ajudavam a edificar um sistema bancário “sombra” (the shadow banking system – como carinhosamente é tratado pelos especialistas), que assumia agora uma dimensão tal que o tornava impossível de ser representado numa página de tamanho A4. Banqueiros de todo o mundo, à boleia da globalização, reúnem-se numa enorme mesa onde, sem qualquer racionalidade que não a implícita na lei das probabilidades, se comportam invocando tacitamente o direito de transferir para os seus clientes-depositantes o risco decorrente das actividades “lúdicas” que praticam.
A desregulação torna a ser uma pobre metáfora da mão invisível de Adam Smith, em contexto de banca de investimentos. A banca comercial segue-lhe avidamente as pisadas, levando a que a cotação bolsista da ganância bata recordes. Pouco menos de dez anos volvidos, em 2008, o mundo assiste, aterrado, ao início da segunda maior crise financeira da nossa história, cujos efeitos se encontram bem longe de estar definitivamente contabilizados. Desenganem-se os que achavam que a ganância teria os dias contados: apesar de se ter assistido a uma maior regulação no sistema financeiro e na actividade bancária, a vontade política existente não foi suficiente para revogar a lei GLS.
A ganância respirava de alívio.
2017
Os americanos preparam-se para renovar (?) a Casa Branca. Com Sanders fora da corrida, por forte convicção doutrinária ou apenas porque seria estúpido acreditar em almoços grátis no eixo Wall Street – Capitólio, tudo aponta para que, com uma ou outra derivação de pormenor, o estado destas coisas pouco importantes se perpetue. O resto é escrever a história futura: com liquidez a mais na economia financeira e a menos na economia real, a questão não é saber se a bolha rebenta: a questão é saber quando.
Até lá, a ganância continua bem e recomenda-se.
* referência à frase da personagem Gordon Gekko, interpretada por Michael Douglas na longa-metragem “Wall Street”, de Oliver Stone. “Greed is Good” ou, “A ganância é boa”