A invasão militar da Síria pela Turquia não é apenas contra os curdos – é uma tentativa de reforçar a extrema direita na Turquia. É uma ação injusta que merece repúdio.
por Max Zirngast, Alp Kayserilioğlu e Güney Işıkara
No dia 9 de outubro, depois de receber a luz verde do presidente Donald Trump (EUA), a Turquia realizou sua velha ambição de invadir o nordeste da Síria (Rojava). Apoiada por até 15 mil combatentes jihadistas que operam sob nomes como “Exército Nacional da Síria” (SNA), a ofensiva foi reforçada pelo pesado bombardeio de artilharia e apoio aéreo do exército turco em toda a fronteira turco-síria. Enquanto as forças jihadistas servem como uma espécie de bucha de canhão para as Forças Armadas Turcas (TAF), espera-se que mais soldados no exército regular sejam mobilizados à medida em que a guerra avança.
Como afirmou o presidente autocrático da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, a operação busca “limpar” uma área no norte da Síria, com 30 quilômetros por 400 quilômetros, de “elementos terroristas” e reassentar até 2 milhões de refugiados sírios da Turquia. Como a área encapsula quase todas as grandes cidades sob a Administração Autônoma do norte e leste da Síria, liderada pelos curdos, o que começou como a “revolta de Rojava”, em 2011, está à beira da destruição.
As notícias são terríveis: várias vítimas civis, infraestrutura civil danificada, relatórios de ambulâncias destruídas ou sequestradas, hospitais bombardeados ou abandonados. Até 130 mil pessoas já deixaram suas casas e um desastre humanitário parece iminente. Fotos e vídeos horrendos de atrocidades praticadas por turcos e aliados estão circulando pelas mídias sociais. O exército turco parece ter deliberadamente bombardeado prisões controladas pelos curdos, com até 15 mil suspeitos do EI (Estado Islâmico), numa tentativa de ajudá-los a escapar. Há relatos de que centenas de suspeitos do EI foram beneficiados. Se as coisas continuarem como estão, pode-se assistir ao renascimento do EI.
Foi dada muita atenção (com razão) à aprovação da invasão por Trump, bem como à reviravolta dos EUA em relação aos curdos. Este artigo vai se concentrar num tema: como a dinâmica política interna da Turquia deu origem à invasão.
Existem várias razões para tal. A primeira delas é óbvia: o governo turco queria destruir a autonomia de Rojava desde 2011 – primeiro tolerando e apoiando o EI (na eliminação do qual as forças curdas tiveram um papel central) e depois lançando invasões militares limitadas em 2016 (nas cidades de Jarabulus e al-Bab) em 2018.
Para as forças dominantes na Turquia, a mera existência de Rojava é vista como um perigo, pois fortalece forças pró-curdas e pró-democráticas no país. Também é visto como um modelo de organização do Estado e da sociedade oposto ao neoliberalismo autocrático e hipernacionalista da Turquia – e, como tal, constitui uma ameaça ao governo autoritário. De fato, a guerra contra os curdos foi um dos principais elementos que uniu o Partido da Justiça e Desenvolvimento de Erdoğan (AKP) com alguns de seus rivais nacionalistas após a forte exibição do Partido Democrático dos Povos Pró-Curdos (HDP), de esquerda.
Segundo, essa razão mais geral está ligada a circunstâncias específicas – a aguda crise hegemônica do regime após as eleições locais em março e junho. As eleições revelaram o descontentamento generalizado com o status quo econômico e político na Turquia. Em particular, a reprise das eleições de Istambul em junho – que testemunhou a impressionante derrota do candidato a prefeito do AKP – provou que o partido e seus aliados não podem mais impor sua vontade com brutal repressão e fraude.
Com o descontentamento crescente, rachaduras se espalham por todo o sistema após as eleições locais deste ano. O mais alto órgão judicial do país, o Tribunal Constitucional, decidiu por um único voto que os processos contra o grupo antiguerra Academics for Peace (BAK) foram uma violação da liberdade de expressão. Após a decisão, centenas de acadêmicos perseguidos por suas crenças foram absolvidos.
Os juízes do Tribunal Constitucional que votaram a favor do grupo antiguerra foram nomeados principalmente durante a presidência do cofundador do AKP, Abdullah Gül, que agora está se unindo ao antigo “czar da economia” do AKP, Ali Babacan, para formar um novo partido. Babacan e apoiadores criticam o AKP por se afastar do neoliberalismo de centro-direita, que tentam reviver. Da mesma forma, o ex-ministro das Relações Exteriores do AKP e então primeiro-ministro Ahmet Davutoğlu trabalha para formar um partido conservador islâmico como uma alternativa ao AKP. Embora estejam longe, esses dois partidos, de terem sucesso imediato, capturar até uma minoria da base de eleitores do AKP aprofundaria a crise do partido em apuros. Babacan e Davutoğlu aceleraram seus respectivos esforços desde as eleições locais.
Quanto à decisão do Academics for Peace, não foi um evento singular, mas reflexo de uma tendência mais ampla. Entre outros oposicionistas, Sırrı Süreyya Önder, ex-parlamentar do HDP, foi absolvido de todas as acusações após cumprir dez meses de prisão. E Max Zirngast foi absolvido recentemente da acusação de “pertencer a uma organização terrorista” depois de enfrentar acusações por mais de um ano.
Ainda assim, a pressão sobre as várias facções da oposição não diminuiu. Em agosto, os coprefeitos das três maiores cidades de maioria curda foram depostos sob acusações de terrorismo e, no mês passado, o chefe do principal partido de oposição em Istambul, o Partido Popular Republicano (CHP, centrista) foi condenado e sentenciado a quase dez anos sob acusações absurdas. Osman Kavala, o famoso patrono liberal, também permanece na prisão depois de dois anos sob acusações falsas.
Em resumo, ocorreu um processo contraditório de liberalização parcial, processo em que o regime concentra sua energia naqueles que considera seus inimigos políticos mais importantes e reduz temporariamente a repressão contra aqueles que não vê mais como uma ameaça iminente. Enquanto isso, forças de oposição e dissidentes se sentem encorajadas a agir. Tudo isso flui diretamente do duro golpe que o AKP e seus aliados sofreram nas eleições locais.
A natureza contraditória desse processo de liberalização parcial também pode ser vista nas ações e no relacionamento dos municípios recém-conquistados da oposição – especialmente Ankara e Istambul – com o regime reinante. Por um lado, pretendem expor a corrupção e o desperdício pelas antigas administrações do AKP e aliados do regime. O AKP – mais o Partido Nacional do Movimento fascista (MHP) e outras facções de direita – demonstrou uma atitude hostil para as novas administrações municipais. O prefeito de Istambul, por exemplo, foi excluído de uma reunião de alta prioridade após um pequeno terremoto perto da cidade. Por outro lado, Erdoğan convidou todos os prefeitos para uma reunião de conciliação em seu palácio, pelo “bem da Turquia”, e os prefeitos da oposição, como costumam fazer, se abstiveram de exibir qualquer combatividade.
Essas tendências contraditórias correspondem ao constante equilíbrio de poder na sociedade turca e ao bloco dominante. O governo foi forçado a adotar uma estratégia de liberalização parcial após sua derrota nas eleições locais – e agora, a guerra é a tentativa do AKP de mudar as coisas a seu favor.
Após os reveses do AKP nas eleições locais, as autoridades turcas começaram a pressionar ainda mais os EUA para obter aprovação para uma invasão militar. Quando essa aprovação chegou, a Turquia imediatamente lançou a incursão. Apesar da falta de apoio internacional, o AKP e seus aliados pensaram estar contra a parede e optaram por arriscar um possível conflito com seus aliados internacionais para estabelecer um novo status quo no terreno.
E o cálculo parece ter funcionado: o regime severamente enfraquecido conseguiu recuperar a iniciativa, impulsionada pelo forte apoio público na Turquia à invasão da Síria. Toda a oposição parlamentar, além do HDP, de esquerda e pró-curdo, se juntou à euforia hiper-nacionalista, seja o nacionalista de direita İYİ Parti ou o Islamic Saadet Partisi ou o centrista CHP, o maior partido da oposição. Apenas uma minoria de funcionários do CHP, como o membro curdo do parlamento Sezgin Tanrıkulu e o chefe do partido de Istambul Canan Kaftancıoğlu, se opuseram à guerra.
Mais uma vez, a invasão militar demonstrou da maneira mais desprezível que todos os partidos da ordem burguesa na Turquia se unem quando a “existência do Estado” está supostamente em jogo. Nesse sentido, é quase impossível distinguir entre os “islâmicos” e os “kemalistas seculares” – supostamente as duas principais facções em conflito na Turquia, segundo a leitura liberal.
O que está em jogo, no entanto, não é a “Turquia” nem a “existência do Estado”. Esta não é uma guerra para “defender a Turquia” de uma “ameaça terrorista”. É uma guerra das forças da extrema-direita para recuperar o momento perdido, a fim de se institucionalizarem. Ou seja, é uma guerra pelo fascismo. Em vez de se oporem a essa barbárie e atacar de frente o regime de Erdoğan e seus aliados, os principais partidos da oposição ajudaram a restabelecer um regime de crise e deram a ele carta branca para continuar suas atrocidades.
A outra fonte importante de desestabilização para o governo, pelo menos desde a primavera passada, tem sido a economia. Choques frequentes de moedas tem sido uma das principais fontes de turbulência, graças ao modelo econômico de dívida do país. O setor privado, sobrecarregado pelo nível da dívida externa, que atinge 40% do PIB, está permanentemente confrontado com ameaças de falência e problemas de pagamento. Em contraste com as alegações de funcionários do governo de que a economia está em recuperação, a produção industrial, um indicador crucial do desempenho econômico, vem se contraindo desde o início de 2019.
Recentemente, houve aumentos de impostos e preços que variam de 15% a 25% em transporte, eletricidade, gás, leite, açúcar, pedágio. A resposta do governo foi uma solução rápida: mexer na própria medida, reduzindo artificialmente a inflação para um dígito.
A crise em curso, que se manifesta como um declínio persistente nos padrões de vida e não um colapso repentino, prejudicou a popularidade de Erdoğan e de seu partido. Vozes na imprensa pró-governo começaram a criticar o sistema presidencialista que Erdoğan promoveu por meio de referendo em 2017, aumentando muito seus poderes. Com inúmeras pesquisas mostrando uma queda significativa e inequívoca no apoio de Erdoğan, a invasão de Rojava é uma tentativa clara de reforçar a posição do AKP.
Além de desviar a atenção das queixas socioeconômicas e consolidar a nação contra o “inimigo eterno”, mais uma vez por meio da mobilização chauvinista, a incursão militar promete uma recuperação econômica (pelo menos marginal) para a Turquia. Logo após Erdoğan ter anunciado seus planos de ocupação para o mundo inteiro na Assembleia Geral da ONU no final do mês passado, seu escritório publicou um livreto detalhando os possíveis projetos para Rojava ocupada. Antes de transferir de 1 a 2 milhões de refugiados sírios para essas terras, a Turquia investia cerca de US$ 26 bilhões (151 bilhões de liras turcas) em construção e infraestrutura. Os capitalistas turcos estão esperando por esta oportunidade (presumivelmente com apoio do Estado) com os olhos brilhantes – é uma das razões pelas quais todas as suas câmaras e associações declararam imediatamente apoio total aos “exércitos heróicos” da Turquia.
Por último, mas não menos importante, o governo de Erdoğan busca não apenas fortalecer a si mesmo e seus aliados imediatos, mas também enfraquecer a oposição. Nas últimas semanas, a mídia pró-governo e alguns membros da oposição anticurda reclamaram de uma suposta aproximação entre o CHP e o HDP. Devlet Bahçeli, líder do MHP fascista e um importante aliado de Erdoğan, disse que “o caminho para o líder do CHP Kılıçdaroğlu “é o do tribunal”. Dezenas de pessoas foram detidas por falar em uma “guerra”. “Em vez de uma” operação contra o terrorismo”. O ministro do Interior, Süleyman Soylu, insiste: “Isso não é uma invasão. Chamar isso de guerra é traição”.
O fascismo é uma besta que devora a oposição, seja esquerda ou direita, e também seus dissidentes e prospera com o sangue que derrama. É por isso que deve ser confrontado com a resistência em todas as frentes. O CHP e outros partidos da oposição burguesa procuram resistir à tempestade e domar a fera fazendo compromissos com ela. Mas apaziguamento é uma escolha mortal.
E os EUA? É claro que a decisão de Trump de aprovar a Turquia, por mais ambígua que seja, não é apenas atribuível a um capricho do presidente dos EUA. O próprio imperialismo dos EUA está dividido entre impulsos concorrentes: uma parte do bloco dominante visa perpetuar um arranjo internacional em que os EUA lideram os estados e instituições do hemisfério capitalista ocidental; outro bloco deseja o unilateralismo e auto-suficiência dos EUA como uma maneira mais eficaz de manter poder e lucros.
Embora a primeira tendência deseje que os EUA trabalhem com outras nações e cooptem o maior número possível de atores em escala internacional (incluindo os curdos na Síria, como uma suposta carta na manga contra Assad e o Irã, e talvez até a Turquia), a outra tendência quer reduzir ao máximo o envolvimento internacional dos EUA e transferir tarefas de responsabilidade e segurança para outros estados – nesse caso, a Turquia, sua parceira da Otan.
Não importa o que essas contradições signifiquem para o imperialismo dos EUA – até hoje a Rússia parece ser a principal vencedora da guerra por procuração contra o imperialismo na Síria. No domingo (13) as forças curdas e seus aliados anunciaram que concordaram em cooperar com Assad (e Rússia) para evitar o progresso genocida da Turquia e de seus aliados jihadistas. O Exército Árabe Sírio rapidamente entrou em muitas cidades e áreas cruciais em Rojava (embora ainda deva ser visto se Assad e o governo liderado pelos curdos podem concordar com questões políticas, como um processo de trabalho em direção a uma nova constituição).
Do ponto de vista da Rússia, os EUA deram um tiro no pé. As forças curdas no terreno estão totalmente isoladas dos EUA, a quem acusam amargamente de traição. O relacionamento dos EUA com a Turquia também foi afetado, com a crescente reação política da facção “internacionalista-intervencionista” contra a invasão. Enquanto escrevemos, o Exército Árabe da Síria está progredindo para o norte e se aproximando da fronteira turca.
O mundo pode ter de lidar com um EI renascido. Mas a guerra também afetará a sociedade turca de uma maneira que alguns não estão levando a sério: se a invasão militar for bem-sucedida, Erdoğan e seus aliados fascistas aumentarão enormemente seu poder. Todo o terreno político conquistado nos últimos meses e anos pode ser perdido. Todas essas pequenas vitórias parciais podem desaparecer.
É fundamental resistir à invasão militar – porque é também a única maneira de impedir que o fascismo ganhe impulso na própria Turquia.
por:
- Max Zirngast é escritor independente e estuda Filosofia e Ciência Política em Viena e Ancara
- Alp Kayserilioğlu é editor da revista Re-volt e faz doutorado em Economia Política, Hegemonia e Dinâmica Popular na era do AKP na Turquia
- Güney Işıkara faz doutorado em Economia na New School for Social Research
Texto em português do Brasil, com tradução e adaptação de José Carlos Ruy
Exclusivo Editorial PV (Fonte: Jacobin)/ Tornado