Escrevemos aqui, não há muito tempo, que num encontro internacional sob o tema da Paz, onde participámos, uma delegada de um dos países intervenientes fazia notar a pouca ou nenhuma referência ao português António Guterres. E não só naquele encontro como um pouco por toda a parte onde ela estivera – Assembleia da República, organismos oficiais, Ongs, universidades nacionais, públicas e privadas. Como se o prestígio do homem forte da ONU, o mediador internacional mais categorizado, nos inibisse de alguma forma.Há dias, perguntou-se a António Guterres secretário-geral da ONU, qual era a forma como a comunidade internacional via o seu pais e Guterres respondeu Portugal “está na moda, olha-se para Portugal como um país seguro, o que é de uma enorme importância, muito acolhedor, e com condições muito atrativas para as pessoas se instalarem, quer as gerações mais antigas, quer as mais novas”.
Mas como é que Portugal olha para António Guterres?
O País é amargurado – apesar de atrativo para os outros, muitos dos quais transportadores de amarguras mais profundas. Há saudosistas dos anos em que as pessoas temiam. Quem cultive o lado lendário de uma ditadura que os anos distanciam mas revestem de uma aura fantástica e fantasmagórica. Reivindica-se os autos de fé da velha e assassina Inquisição, defendendo-os, e exibem-se guilhotinas novas em folha sequiosas de cabeças, decapitando o lado mais seguro de um País que é mais do que os seus recalques e frustrações.
Digladiamo-nos por causas menores, somos incapazes da complacência em temas quotidianos e banais e acobardamo-nos com as grandes causas, para as quais não nos mobilizamos. Nem votamos! Das autárquicas, às legislativas, à europeias, aos simples sufrágios dentro das universidades ou das escolas secundárias. Somos como tremelicamos, isto é personalidades de gelatina, sentados nos sofás a espumar de raiva. Perseguimos quem nos ajuda. Somos ácidos – e todavia capazes de doçuras inquietantes.
Guterres entra no rol das nossas memórias contraditórias. O jovem leitor da Bíblia da aldeia de Donas que agora é um dos homens mais poderosos do mundo. Quem perdoa uma coisa destas? Foi Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e o seu trabalho foi reconhecido ao mais alto nível. Todavia, a direita mais conservadora tem medo dos refugiados – pois a memória da História nada diz a esses – e faz deles seus “cavalos de batalha” para nacionalismos radicais e assustadores.
E ao baixo nível?
Há quem diga que a coragem internacional de Guterres – que vem de longa data, desde que enfrentou, sozinho, o ditador da Indonésia Hadji Mohamed Suharto e colocou Timor nas agendas do mundo (em 1996), exigindo a libertação de Xanana Gusmão e o reconhecimento da dignidade timorense – não se manifestou em Portugal, quando abandonou o Governo na sequência de um mau resultado eleitoral do PS nas autárquicas. A sua habilidade diplomática, lendária internacionalmente, ainda hoje é vista como fraqueza dentro das nossas fronteiras, no que remete para algumas questões nacionais.
O pequeno Tonico, que lia a Bíblia com voz bem entoada, teve sempre o apoio de certos padres. O António, adulto, teve a seu lado, por exemplo, o influente Vítor Milícias. Imperdoável, para alguns. Que Portugal não é tão católico quanto o pintam. E a Igreja Católica está longe de ser um garante de imparcialidade e boas práticas.
Marcelo Rebelo de Sousa disse, recentemente de Guterres: “É a figura mais brilhante da minha geração”.
Brilhante até nos estudos: Guterres acabou com média de 19 o Instituto Superior Técnico; é engenheiro eletrotécnico…). Dentro do PS tem inúmeros críticos, que o rotulam: calculista. Sempre correu por si. Não alinhou (com Constâncio, Sampaio, Soares, é bem verdade!). Não era um político frontal.
Em compensação, era e é um homem de causas. Que trabalhou de facto junto a quem mais precisava de auxílio. Que ao longo de toda a vida não foi (somente) dos gabinetes. Guterres até funda a DECO, com Francisco da Mota Veiga. E ajuda na criação da revista ProTeste, ainda hoje publicada pela associação.
Foi presidente da Internacional e o Jacques Delors, já retirado, elegeu Guterres como o seu favorito para substituí-lo à frente da União Europeia.
Hoje tem um dos cargos mais importantes do mundo. Há portugueses que não sabem quem ele é.
Há estrangeiros que se admiram muito por isso – porque o admiram muito.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90