A segunda década do século XXI abre com a chegada à Casa Branca de um novo presidente, que, a crer na generalidade da comunicação social europeia, trará com ele um novo futuro.
Depois da passagem de Donald Trump (relativamente à qual não se deve subscrever a ideia que não constituiu senão um acidente, sob pena de o “acidente” se voltar a repetir rapidamente) poderão abrir-se algumas perspectivas diferentes nas relações transatlânticas, mas nada que inverta um passado recente, do qual convém recordar que mau grado a crise sistémica global despoletada em 2008 com a crise do subprime norte-americano e a agravada a partir de 2012 com a crise do euro (crise das dívidas denominadas em euros), a organização mundial tem-se mantido como foi desenhada em 1945 e em reflexo do desfecho da II Guerra Mundial e da ascensão dos EUA ao papel de principal potência mundial. Mais do que reflectir o óbvio facto dos EUA terem emergido da guerra como a única economia intacta, ela reflecte uma relação transatlântica, uma ligação entre os EUA e a Europa assente numa dupla proposição: em primeiro lugar, onde a Europa precisa da protecção americana para que as suas nações não se envolvam em conflitos – o que a par com o interesse mútuo na conjugação de esforços e mais tarde apontado à oposição ao Pacto de Varsóvia resultaria na criação da NATO – e, em segundo lugar, a prosperidade económica, ligada ao famoso Plano Marshall, lançado em 1947 e à criação da OCDE.
O mundo dirigido pelo Ocidente que emergiu da II Guerra Mundial foi predominantemente centrado nos EUA durante décadas mas embora o poder político do eixo transatlântico residisse em Washington ele foi amplamente sustentado pelo sucesso económico e moral da Europa, até que na década de 1990 os EUA, inebriados, interpretaram o colapso do império soviético como uma vitória pessoal, precipitando-se no esquecimento do papel desempenhado pelos europeus na Europa Ocidental e no colapso da própria URSS, passaram a julgar-se os senhores do mundo. Disso foi exemplo a política norte-americana no período que se seguiu à queda do Muro de Berlim e que o então presidente norte-americano George Bush lançou com a ideia de uma “nova ordem mundial” subordinada ao dogma da inexistência de alternativa à liderança norte-americana.
Mas esta nova ordem mundial não tem sido senão um processo de liderança através da guerra, numa sucessão de conflitos regionais, iniciada com a I Guerra do Golfo (1991), a que se seguiram as invasões do Afeganistão (2001), a II Guerra do Golfo (2003) e o derrube de regime líbio de Muammar al-Kadhafi (2011), que conduziu à perca da credibilidade e à crise financeira (em 1989 o peso da dívida no PIB dos EUA era de 50% mas em meados do ano passado já tingia os 136%) da potência hegemónica, que só continua a resistir graças ao seu império monetário e, queira-se ou não, ao apoio europeu.
O crescente peso desta subordinação da Europa aos EUA tem sido mais ou menos combatido ao longo do tempo – basta lembrar que nas últimas décadas assistimos a tentativas de ruptura, como o lançamento da moeda única europeia (como o próprio FMI reconhecia neste relatório de 2006), a criação do INSTEX (um veículo financeiro especial, criado em 2019 pela Bélgica, Dinamarca, Holanda, Finlândia e Suécia, para facilitar as transacções não-USD e não-SWIFT com o Irão e evitar a violação das sanções impostas pelos EUA) o relativo distanciamento europeu face à II Guerra do Golfo e até o processo do Brexit, devemos igualmente recordar a distante entrada da França no clube nuclear, na década de 1960 – e sempre contrariado pelos EUA de forma mais ou menos sub-reptícia até à chegada da administração Trump que pondo abertamente em causa a NATO e várias relações comerciais veio confirmar claramente a dissociação entre a UE e os EUA.
Com a chegada da administração Biden e salvo o clima de crispação próprio do nacional-populismo da anterior administração Trump, pouco deverá mudar pois é natural que a ligação transatlântica não esteja prestes a desaparecer; os EUA e a Europa têm uma história, cultura e valores comuns (mesmo que estes possam precisar de ser repensados), e muitos são os instrumentos – instituições, comércio, comunicação social, sociedade civil, empresas e redes de conhecimento – que ainda os ligam.
A verdadeira dúvida deverá consistir em apurar se os dirigentes europeus e americanos – e os respectivos cidadãos – estão ou não preparados para repensar o futuro da sua ligação.
É possível que as novas realidades sociopolíticas e geopolíticas transatlânticas e globais, tenham alguma influência nisso, mas mais relevantes para uma possível mudança parecem ser a maior experiência europeia na adaptação/transformação ditada pelas crises deste século (subprime e dívida), a reafectação no eixo transatlântico das “big tech” norte-americanas e as fragilidades norte-americanas nos campos socioeconómico e sanitário reveladas pela Covid-19.
Para mais a partilha euro-americana na orientação da relação transatlântica poderá até permitir à administração Biden a possibilidade de melhor cuidar dos problemas internos de um país que se apresenta profundamente dividido, por questões como o racismo, a imigração e a intolerância, e fragilizado pela debilidade da resposta à Covid-19.
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