Há 57 anos, Salazar viveu um dos momentos mais negros da sua vida política. Um momento que mostrou ao mundo a sua fraqueza e impotência. Responsável do acontecimento? Um militar brilhante: Henrique Galvão e a “Santa Liberdade”.Homem de Pátria e Liberdade, Galvão foi um militar brilhante e um excelentíssimo professor de Táctica. Cadete de Sidónio e do “28 de Maio”, integrou o grupo militar do General Óscar Carmona (ex-ministro da Guerra da República e um dos dois maçons que integravam o triunvirato que gizou e executou o golpe) e desempenhou com brio as várias funções a que foi chamado. Em 1935, Galvão está com o seu Presidente na inauguração da Emissora Nacional, de que é o primeiro responsável.
Logo a seguir à morte de Carmona (1951), afasta-se do regime (agora, sim, já comandado por Salazar, após a morte do Presidente) e apoia a candidatura presidencial anti-salazarista de Quintão Meireles.
Logo no ano seguinte está envolvido numa tentativa de golpe contra Salazar, é preso pela PIDE e expulso do Exército. Condenado, passa anos nas prisões salazarentas. Mestre de táctica, consegue uma evasão espectacular em 1959 e alcança a América do Sul. Em 1960, surge a sua “Carta Aberta a Salazar”.
Fuga e carta abalam o poder de Salazar nos seus fundamentos. Militar e escritor (tem já, então, vasta obra publicada), Galvão vive com a pena numa mão e a espada na outra. Escrita a carta-manifesto, é momento de usar a espada. A residir na Venezuela, giza e monta a ‘Operação Dulcineia’ que, em Janeiro de 1961, o leva a fazer do paquete português ‘Santa Maria’, como dirá na alocução aos passageiros e ao mundo, “o primeiro pedaço da pátria libertada”.
Operação montada com meios de circunstância, a tomada do ‘Santa Maria’ cumpriu apenas coisa de metade dos objectivos previstos. Esse momento alto foi também o momento final da sua colaboração com o vencedor das eleições presidenciais de 1958, a quem Salazar mandara roubar a vitória e que também se exilara na América do Sul, o General Humberto Delgado, que meses depois já estará clandestino em Portugal para encabeçar o golpe de Beja gizado e montado (mas não comandado…) por um ex-aluno de Táctica de Galvão, o coronel Eugénio Óscar de Oliveira que estará depois no “25 de Abril” e com Eanes no “25 de Novembro”…
A “Operação Dulcineia”
Para conhecimento e apreciação dos leitores, registo aqui esta “Memória descritiva: a Operação Dulcineia” que dá uma síntese de quem era Henrique Galvão e o que foi a “operação” de Janeiro de 1961. Alerto, porém, para o facto de conter um erro. O autor, ao fazer a apresentação de Galvão, escreve que ele era “um salazarista convicto”. Tal não é a verdade. Galvão nunca foi salazarista. Cadete ainda, Galvão esteve com Sidónio Pais e esteve no “28 de Maio” com Óscar Carmona. Salazar só será “inventado” algum tempo depois pelo Almirante Mendes Cabeçadas, o homem que primeiro dirigiu o triunvirato vencedor do “golpe” de 1926.
A ligação de Galvão e a sua lealdade não são pois com Salazar mas com o Presidente Carmona, um homem que tem sido muito pouco estudado, bastante ignorado e levianamente confundido com Salazar. Óscar Carmona morre em 1951 e nesse mesmo ano Galvão entra em ruptura com o regime e a sua nova configuração…
Os militares de Carmona (alguns vindos das fileiras do grupo do fundador da República, o comandante Machado dos Santos, como é o caso do capitão Agostinho Lourenço) vão, depois da morte de Carmona (1951), afastar-se do regime ou ser afastados pelo regime. O caso de Agostinho Lourenço, frequentemente acusado de ser “o anjo negro de Salazar”, é exemplar da cegueira de certas “narrativas” que nunca foram capazes (ou não lhes convinha…) ver as contradições, diferenças e divergências dentro de um regime que, ao contrário do que pretendem os autores dessas narrativas, nunca foi monolítico.
Tal como o anglófilo Delgado foi comandar a germanófila Legião Portuguesa para fazer o seu containment, assim Agostinho Lourenço (outro anglófilo) foi colocado à cabeça dos serviços secretos e de segurança (onde já estava nos tempos da República…) para impedir o seu controlo por gente de fora dos círculos militares de Carmona… A candidatura do General Sem Medo, em 1958, não caiu do céu mas, sim, surgiu do afastamento dos “carmonistas” de Salazar, durante toda a década de cinquenta.
Delgado era, como Galvão, cadete de Sidónio e tenente do “28 de Maio”. Anglófilo e um dos principais interlocutores do MI6 nas Forças Armadas Portuguesas, durante a II Guerra, Delgado foi sempre um militar leal a Carmona e aos seus camaradas. O último grande choque entre esse grupo e a equipa de Salazar regista-se em 1964/5 quando Salazar veta a candidatura presidencial do Almirante Sarmento Rodrigues (então governador-geral de Moçambique e que mantinha uma espécie de “telefone vermelho” com o presidente da Frelimo Eduardo Mondlane… tema a que um dia teremos de voltar). Salazar recusa a candidatura de Sarmento Rodrigues e impõe a recondução de Américo Tomás… A sua relação com os homens e os dispositivos de Carmona rompe-se de vez.
Galvão não só nunca foi “salazarista convicto” como, com o seu carácter impetuoso, é dos primeiros militares dos círculos de Carmona a romper e a afastar-se, logo depois da morte do chefe, em 1951.
A História do século XX português não cabe nas correntes narrativas de conveniência (política ou outra) e ainda está por fazer e contar…
Dois cadetes de Sidónio, dois tenentes do ’28 de Maio’ e dois homens do General Óscar Carmona, em luta pela “Santa Liberdade”
Henrique Galvão na Paris Match, de 04 de Fevereiro de 1961. Capa e, lá dentro, 12 páginas de reportagem a bordo do ‘Santa Maria’… A “Operação Dulcineia” foi também uma fabulosa operação de comunicação política