Santiago, Chile (AP) – No Chile, esquerdistas foram torturados, jogados de helicópteros e forçados a assistir parentes sendo estuprados. Na Argentina, muitos foram “desaparecidos” por membros da brutal ditadura militar que manteve detidos em campos de concentração.
Tudo isso aconteceu com o endosso de Henry Kissinger, o ex-Secretário de Estado dos EUA, que morreu dia 29 de novembro de 2023, com 100 anos.
Enquanto homenagens eram derramadas para a figura imponente, que foi o principal diplomata dos EUA sob os presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, o humor estava decididamente diferente na América do Sul, onde muitos foram profundamente marcados durante a Guerra Fria por abusos dos direitos humanos infligidos em nome do anticomunismo, e onde muitos continuam a abrigar uma profunda desconfiança de seus poderosos vizinhos do Norte.
“Eu não conheço qualquer cidadão americano que seja mais deplorado, menos querido na América Latina do que Henry Kissinger”, disse Stephen Rabe, um professor de história aposentado da Universidade do Texas, em Dallas, que escreveu um livro sobre a relação de Kissinger com a América Latina. “Você sabe, a realidade é, se ele tivesse viajado quando a democracia voltou em qualquer um desses países, ele teria sido imediatamente preso”.
Kissinger e o Chile
Não há provavelmente exemplo mais nítido da intromissão de Kissinger na democracia da região, e então apoio da brutalidade em nome do anticomunismo, do que no Chile.
No Chile, Kissinger desempenhou um papel chave nos esforços para fazer tudo em poder dos Estados Unidos para minar e enfraquecer o governo socialista de Salvador Allende, que foi eleito presidente em 1970. Kissinger usou seu domínio para sustentar a ditadura militar do Geneneral Augusto Pinochet, que subiu ao poder em um golpe em 1973, repetidamente se recusando a chamar a atenção para as numerosas violações de direitos humanos do regime de Pinochet, que assassinou oponentes, cancelou eleições, restringiu a mídia, suprimiu os sindicatos e dissolveu partidos políticos.
Kissinger alegou por muito tempo que ele não estava ciente dos abusos dos direitos humanos que foram cometidos na região, mas registros mostram que esse não foi o caso, disse Peter Kornbluh, um analista sênior no Arquivo Nacional de Segurança que é responsável por seu projeto do Chile.
“O registro histórico tornado público, os documentos que Kissinger escreveu, não deixam dúvida de que ele foi o arquiteto chefe da política dos EUA para desestabilizar o governo de Allende, e de que ele também foi o chefe facilitador de ajudar o regime de Pinochet a consolidar o que se tornou uma ditadura de 17 anos sangrenta e infame”, disse Kornbluh.
Kissinger era “de algum modo obcecado” com o governo de Allende, temendo que a ascensão de um governo socialista através de meios democráticos pudesse ter um efeito contagioso na região, disse o Senador chileno José Miguel Insulza, um ex-Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos que serviu como um conselheiro de política externa no governo de Allende.
“Para ele, qualquer ação que significasse defender os interesses nacionais dos EUA parecia justificável”, disse Insulza.
Kissinger temia o que o governo de Allende podia significar para o mundo.
“Em termos geopolíticos, Kissinger considerou a ascensão da coalisão de esquerda ao poder através de meios democráticos ainda mais perigosa do que o exemplo dado por Cuba. Realmente, isso podia ser replicado em países ocidentais com partidos comunistas poderosos em termos de influência eleitoral, como na Itália”, disse Rolando Álvarez, um professor de história na Universidade de Santiago, no Chile.
Ele parecia não ser afetado por histórias de sofrimento nas mãos de oficiais militares, mesmo embora sua própria família chegou nos EUA como refugiados que tinham fugido da Alemanha nazista em sua adolescência.
Não fez nada sobre ataques a judeus
“No final de 1976, assessores do Departamento de Estado diziam o a Henry Kissinger, um judeu, que os judeus estavam sendo alvos na Argentina”, disse Rabe. “E Kissinger simplesmente não fez nada”.
Na vizinha do Chile, Argentina, uma junta militar subiu ao poder em 1976, prometendo combater esquerdistas “subversivos”. Kissinger deixou claro que ele não tinha objeções a suas táticas brutais, e repetidamente ignorou chamados de outros oficiais do Departamento de Estado para levantar mais preocupações sobre violações de direitos humanos.
Em uma reunião de junho de 1976, Kissinger tinha uma mensagem para o Ministro de Relações Exteriores da Argentina, Admiral César Augusto Guzzetti: “Se há coisas que têm que ser feitas, você deve faze-las rapidamente”. Ele mais tarde reiterou esse apoio durante uma reunião em outubro de 1976 – uma época quando os oficiais argentinos estavam preocupados com o levantamento de preocupações sobre os direitos humanos entre relatos de tortura e desaparecimentos.
Guzzetti ficou “muito feliz” com as reuniões e “tinha sentido que Kissinger tinha dado a ele o sinal de que os Estados Unidos não tinham objeções com a matança por atacado”, disse Raber.
Kissinger e a América Latina
Kissinger tinha uma atitude similar em relação a outras ditaduras militares na região, incluindo no Uruguai e no Brasil, e nunca levantou objeções ao que ficou conhecido como Operação Condor, um programa clandestino que permitiu regimes militares nessa parte do mundo para ilegalmente perseguir, deter, torturar e assassinar dissidentes políticos que fugiram de seus países.
Essa atitude deixou uma impressão duradoura na psique dos latino-americanos. “Pelo menos aqui na América Latina, o que eu percebi na visão de Henry Kissinger é muito negativo, porque é um tipo de mentalidade que vale tudo. Não importa o quanto brutal a ditadura seja, ela deve ser apoiada, isso não importa”, disse Francisco Bustos, um advogado de direitos humanos e professor na Universidade do Chile.
Décadas depois, os efeitos dessa política ainda estão sendo sentidos em uma região que sente que os Estados Unidos iriam a quaisquer distâncias para apoiar seus interesses.
“Há um segmento de partidos políticos e movimentos na América Latina, incluindo no Chile, em que a relação com os Estados Unidos é essencialmente marcada pelo anti-imperialismo. Essa perspectiva essencialmente vê qualquer administração nos EUA, seja Democrata ou Republicana, liberal, progressista ou ultraconservadora, como mais ou menos o mesmo”, disse Gilberto Aranda, um professor de relações internacionais na Universidade do Chile.
Embora a intervenção dos EUA na região que foi frequentemente referida como o “quintal da América” tenha uma longa história, Kissinger parecia levar isso ao limite.
Não é surpresa então que uma das reações mais severas a morte de Kissinger veio de um oficial chileno.
“Morreu um homem cujo brilho histórico nunca conseguiu esconder sua profunda miséria moral”, o embaixador do Chile nos Estados Unidos, Juan Gabriel Valdes, postou na plataforma de mídia social X. O Presidente esquerdista do Chile, Gabriel Boric, então, retuitou a mensagem.
por Daniel Politi e Patrícia Luna | Texto em português do Brasil, com tradução de Luciana Cristina Ruy
- Daniel Politi, Correspondente do Cone Sul na AP anteriormente: Stringer no NY Times e no Argus Media, colaborador no The Slatest
- Patrícia Luna, Correspondente no Chile para FRANCE 24 Español e AP. Trabalhou para RTVE, El País, BBC World Service, AFP, Agência SINC e outros
Fonte: Peoples World
Exclusivo Editorial Rádio Peão Brasil / Tornado