As histórias em quadrinhos vivem um admirável boom no Brasil: o de publicações feitas por artistas mulheres ou baseadas na vida de personalidades femininas. Depois de premiadas HQs como Carolina, de João Pinheiro e Sirlene Barbosa (sobre a escritora Carolina Maria de Jesus), e Anita Garibaldi – O Nascimento de uma Heroína, de Custódio Rosa, há um título a engrandecer ainda mais essa tendência: é o recém-lançado Artistas Brasileiras, da quadrinista mineira Aline Lemos.
Com graduação e mestrado em História, mas agora com uma vida profissional dedicada exclusivamente às artes, Aline não poupou desafios a seu projeto. O mais importante deles foi, conforme suas próprias palavras, enfrentar o “apagamento histórico que impede o reconhecimento da contribuição ampla e diversa das mulheres nas artes brasileiras”.
A autora biografou 30 artistas nascidas até 1930 – das aclamadas Anita Malfatti, Lygia Clark e Pagu até nomes menos conhecidos, como Madalena dos Santos Reinbolt e “Anônima”. Um dos critérios para a seleção foi a representatividade. “Escolhi desenhar mulheres de todas as regiões do país, de filiações artísticas e origens sociais variadas”, afirma Aline, em entrevista ao Prosa, Poesia e Arte.
Com o nickname @desalineada, Aline publica seus quadrinhos no Facebook e no Tumblr. “O nome me pareceu adequado porque remete ao desfazer e a desordem. Gosto da ideia de subverter a ordem estabelecida das coisas”, explica a quadrinista. Só no Facebook, ela tem mais de 21 mil seguidores.
A historiadora e quadrinista Aline Lemos, que biografou, em quadrinhos, “mulheres de todas as regiões do país, de filiações artísticas e origens sociais variadas”
Para além dos méritos artísticos, Artistas Brasileiras já nasce como uma obra de referência. “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador”, ensina um provérbio africano, lembrado pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) numa crônica sobre o Dia Internacional do Trabalhador.
Aline, a exemplo de outras historiadoras, enfrentou esse desafio e ampliou nossa visão sobre o pioneirismo das mulheres. Seu livro se soma a uma lista de publicações tão recentes quanto indispensáveis, como Encantações – Artistas e Imaginação Literária no Brasil, Século 19, de Norma Telles, e Os Direitos das Mulheres – Feminismo e Trabalho no Brasil (1917 – 1937), de Glaucia Fraccaro. Diferentemente destes dois, Artistas Brasileiras não tem como ponto de partida uma tese de doutorado. Mas é imbatível em termos de didatismo e abrangência.
O próximo evento de lançamento de Artistas Brasileiras ocorre em Brasília, em 8 de junho. O livro, que foi publicado pela Editoria Miguilim, pode ser adquirido na página Desalineada.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista de Aline Lemos
Por que @desalineada?
Criei esse nome para a página onde comecei a publicar quadrinhos na internet, em 2014. Tinha acabado de concluir o mestrado em História e decidi abandonar a carreira acadêmica, pelo menos temporariamente, para me dedicar à arte. Foi uma decisão que adiei por muito tempo por falta de confiança e de conhecimento sobre como atuar na área.
O que me deu o pontapé que eu precisava foram os coletivos de mulheres artistas e as iniciativas de incentivo a autoras iniciantes. Comecei a usar os quadrinhos para buscar a minha voz e discutir questões que eu estava vivendo, como política, feminismo e a descoberta da bissexualidade. Com todas essas transformações, o nome me pareceu adequado porque remete ao desfazer e a desordem. Gosto da ideia de subverter a ordem estabelecida das coisas.
Além de quadrinista e ilustradora, você também tem formação – e até pós-graduação – em História. Como fazer para aliar, nas HQs, o rigor esperado de uma historiadora com as liberdades narrativas comuns às artistas?
Não ter que obedecer ao rigor esperado de uma historiadora me permite abordar os assuntos de formas distintas, mas não me permite dizer o que quiser sem consequências ou compromisso com o leitor. O que produzo ainda precisa ser relevante e eficaz na comunicação. Mas não precisar fazer isso exclusivamente do ponto de vista acadêmico me dá a oportunidade de multiplicar as perspectivas sobre o assunto e fazê-las chegarem a mais pessoas.
No projeto Artistas Brasileiras, trabalhei com essa dualidade. Fiz quadrinhos biográficos que seguiam a lógica documental, mas também outras páginas com as personagens históricas em situações cômicas ficcionais. Isso era importante para mim porque eu queria facilitar a entrada dessas artistas em um imaginário contemporâneo e não me abster de comentários.
Mesmo assim, explicito no começo do livro que os trechos documentais, por mais que tenham mais rigor, também estão sujeitos ao meu ponto de vista. Acredito que é importante ser aberto sobre as suas premissas, seja no discurso ficcional ou historiográfico.
Como nasceu o projeto Artistas Brasileiras? Quais foram suas motivações, os caminhos percorridos?
O projeto começou aos poucos até se tornar um livro no ano passado. Desde o mestrado em História, vinha pesquisando história da arte e feminismo, temas que levei para o meu trabalho com os quadrinhos. Em 2016, queria desenvolver um trabalho mais longo com essa linguagem, mas ainda não tinha fôlego ou tempo para trabalhar em um roteiro maior. Então, para facilitar, resolvi trabalhar com o formato seriado e a minha experiência em pesquisa.
Comecei a publicar online os quadrinhos à medida que ia fazendo. São histórias sobre artistas brasileiras, alternando biografias curtas e tirinhas de humor. Minha principal motivação era contribuir para um debate urgente e atual sobre a presença das mulheres na história da arte. Queria chamar atenção para o apagamento histórico que impede o reconhecimento da contribuição ampla e diversa das mulheres nas artes brasileiras.
Ainda vemos ser usado o argumento de que a ausência de mulheres nos museus, nos livros e nos eventos é resultado da sua pequena quantidade, o que simplesmente não é verdade. Mas eu não queria apenas ilustrar esse ponto enumerando artistas – também era importante para mim discutir as condições em que elas produziram e as razões em torno desse processo de exclusão.
Para fazer esse esforço me orientei por pesquisadoras como Linda Nochlin, Roberta de Barros e as ativistas Guerrilla Girls. São discussões que eu já acompanhava com colegas quadrinistas do meio independente – por exemplo, do Zine XXX, portal Lady’s Comics e Mina de HQ.
Tendo essas discussões em mente, a forma de trabalho era a seguinte: durante uma semana, eu fazia uma pesquisa sobre a autora, em artigos e bancos de dados que foram listados no livro. Eu resumia e selecionava as informações para criar um roteiro que seria desenhado a mão e finalizado digitalmente.
PO livro abrange 30 mulheres nascidas até 1930. Qual a representatividade dessas artistas no cenário artístico brasileiro? É possível chamá-las de “pioneiras”?
Representatividade era uma ideia muito importante para mim, do ponto de vista da diversidade. O recorte temporal e numérico foi arbitrário para limitar o escopo do trabalho. Porém, dentre as 30 artistas, escolhi desenhar mulheres de todas as regiões do país, de filiações artísticas e origens sociais variadas.
Várias delas foram pioneiras, no sentido de inovadoras e solitárias em campos pouco abertos a elas. Algumas são mais célebres que as outras, mas acredito que a história de todas elas são interessantes para compreender melhor a história e a arte brasileiras.
Na introdução, faço questão de ressaltar que o livro não dá conta de todas ou as melhores artistas brasileiras, mas de um panorama que nos permita iniciar uma conversa, não encerrá-la. Muitas outras artistas merecem ser reconhecidas e celebradas, mas esse é apenas um passo da discussão. É preciso ir além e questionar a estrutura que faz com que tantas mulheres fossem legadas ao esquecimento.
No livro, você dedica espaço idêntico a cada artista: um perfil por página, num formato mais ou menos padronizado – o que, suponho, deve ter exigido um poder imenso de síntese. Em que medida as informações escolhidas para cada artista são de relevância consensual – e em que medida refletem teu próprio olhar sobre o trabalho dessas mulheres?
Gosto de deixar bem claro que as histórias refletem o meu olhar. Isso não acontece só porque são histórias em quadrinhos. O trabalho da historiadora também tem um ponto de vista que prioriza algumas informações e se desinteressa por outras. Nesse ponto, não fui muito longe da historiadora e listei todas as fontes usadas.
O formato foi desafiador. Apesar de ser ideal para o panorama que o projeto pretendia, uma página é pouco espaço para narrar uma carreira inteira. Precisei exercitar muito o poder de síntese e acabei desenvolvendo uma clareza melhor sobre o que eu pretendia dizer. Queria transmitir informações relevantes sobre as artistas, mas também precisava incluir o meu olhar – ou não traria nenhuma contribuição além do que é possível encontrar na Wikipedia.
No final das contas, o que me orientou foi a proposta de discutir a contribuição e a presença das mulheres na história da arte. Tendo isso em mente, tentei trazer em cada história uma contextualização do trabalho das artistas e suas especificidades. A individualidade de cada uma diante dessa discussão um pouco mais abrangente foi algo que tentei trazer também visualmente.
Para quebrar a padronização das biografias, cada história dialoga esteticamente com a obra da artista em questão. Também foi uma escolha a partir da minha compreensão de que questões estéticas e históricas não estão desvinculadas.
A arte produzida por essas 30 mulheres, no geral, expressa uma visão particularmente feminina? Há um discurso que sobressai?
Não, essas mulheres produziram artes tão variadas quantos são os seus contextos. Não acredito que exista apenas uma visão feminina e a história da arte não dá evidências para tal. O que essas mulheres compartilham são as condições de exclusão e discriminação que tiveram que enfrentar pela condição de mulher. Mesmo assim, cada uma teve recursos e soluções diferentes para enfrentar a situação.
Pessoalmente, das 30 autoras que você selecionou para o livro, qual é a sua preferida – ou as suas preferidas? Por quê?
Gosto muito da Pagu por sua trajetória de militância e irreverência, que ela manifestou de tantas formas. Pouca gente sabe, mas, além de traduzir textos, escrever ficção e jornalismo, ela também desenhou quadrinhos políticos nos anos 30. Essa parte da história dela me apaixona!
Outra artista que me tocou foi a Madalena dos Santos Reinbolt, que como muitas outras precisou conciliar a arte com trabalho pesado e mal remunerado. Só depois de desenhar a história dela é que tive a chance de ver uma de suas tapeçarias pessoalmente, no Museu Afro Brasil. É muito impressionante, fiquei emocionada.
Também tenho muito carinho pela história da artista “Anônima”, porque ela me permitiu dar esse pulo para o que não pude incluir. Ela encerra o livro justamente para lembrar que a história da arte não é feita só de gênios e celebridades, mas de processos de disputa, exclusão e vários outros fatores que estão fora do nosso controle.
Qual é seu próximo projeto?
Estou trabalhando no meu próximo livro em quadrinhos, Fogo Fato. É uma história de mistério e fantasia focada na experiência da solidão e da exclusão na cidade, que será lançada por financiamento coletivo ainda este ano.
Por André Cintra | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado