No âmbito do dia Internacional contra a Discriminação Racial, que se assinalou esta terça-feira, a deputada Idália Serrão diz que “a construção de uma sociedade inclusiva não está na agenda política de todos os estados membros”. A deputada e vice-presidente do grupo parlamentar socialista, neta de avô cigano, defende que “a Educação é determinante para quebrar ciclos de exclusão”
Jornal Tornado: O comissário europeu dos Direitos Humanos, Nils Muiznieks, durante uma visita recente a Portugal denunciou que “os ciganos são a comunidade mais discriminada em toda a Europa”. Concorda?
Idália Serrão: A visita a Portugal do comissário europeu dos Direitos Humanos deixou-nos pistas importantes sobre aquele que é o tratamento discriminatório a que são submetidas as comunidades ciganas em toda a Europa mas também sobre a atitude dos dirigentes europeus perante tão grave problema.
O comissário que criticou também a exclusão do tema das agendas políticas, apontou ainda que os ciganos são “convenientes bodes expiatórios”. Como comenta?
Não só concordo com a sua expressão de que são “convenientes bodes expiatórios” como acrescento que por via da inaceitável discriminação a que estão sujeitos são, efectivamente, os excluídos dos excluídos nos países europeus em que vivem. A retirada da agenda europeia, também referida pelo comissário europeu, da relevância que vinha a ser dada, nos últimos anos, à inclusão das comunidades ciganas nos diferentes estados membros, veio
“Já foram confrontados com apreciações absolutamente intoleráveis sobre pessoas de etnia cigana seguidas do remate de má consciência ‘mas olha que eu não sou racista’? Pois eu já fui”
deixar ao livre arbítrio dos diferentes países da União Europeia a definição de estratégias, a construção e o lançamento de medidas assim como o seu financiamento, acompanhamento e avaliação. Constatamos, nos dias que correm, que a construção de uma sociedade inclusiva não está na agenda política de todos os estados membros. Temos, no entanto, de reconhecer os países que promovem a inclusão de todos os cidadãos.
E Portugal promove essa inclusão?
Não posso deixar de referir os passos que estamos a dar em Portugal, com a definição de uma estratégia, com o seu desenvolvimento e com o financiamento de acções concretas, e com a aposta nas novas gerações Roma, mulheres e homens, que diariamente lutam contra o preconceito que existe na sociedade portuguesa, mas também por uma maior abertura das suas comunidades, nomeadamente para que mulheres e homens, de todas as idades, iniciem e concluam os diferentes ciclos de ensino. A Educação é determinante para quebrar ciclos de exclusão.
“São portugueses como nós”
Caracteriza a sociedade portuguesa como xenófoba e racista?
Os portugueses têm-se na boa conta de nem serem xenófobos nem racistas. O problema reside na representação que temos dos actos discriminatórios, que achamos estarem completamente fora da nossa agenda pessoal e das nossas atitudes, e na forma como efetivamente os praticamos. Já foram confrontados com apreciações absolutamente intoleráveis sobre pessoas de etnia cigana seguidas do remate de má consciência ” mas olha que eu não sou racista”? Pois eu já fui. Vindos, algumas vezes, de onde menos os esperaria.
Consegue entender o que está na origem de tais estereótipos?
Há uma tendência natural para julgar e intervir de forma abrupta sem primeiro tentar entender o que se passa. E quando desconhecemos realidades diferentes da nossa e passamos a vida a julgar os outros com base em preconceitos, damos largas à nossa veia mais etnocêntrica. Existe em Portugal um grave problema que agrava a exclusão das mulheres e homens Roma: associa-se quase sempre um “cigano” a uma caso de polícia. Casos de polícia existem com gente de todas as cores e em todas as famílias. Às vezes até naquelas que estão perto de nós. É preocupante a forma maniqueísta como olhamos para os outros, principalmente
“É preocupante a forma maniqueísta como olhamos para os outros, principalmente se não os considerarmos formatados à nossa imagem e semelhança”se não os considerarmos formatados à nossa imagem e semelhança.
“Existe em Portugal um grave problema que agrava a exclusão das mulheres e homens Roma: associa-se quase sempre um ‘cigano’ a uma caso de polícia. Casos de polícia existem com gente de todas as cores e em todas as famílias. Às vezes até naquelas que estão perto de nós”
Como se pode combater o preconceito?
O preconceito combate-se através da educação. Não só porque na mesma sala de aula coabitam meninas e meninos de todas as cores, mas também porque cidadãos mais informados são menos permeáveis ao preconceito que rapidamente se transforma em discriminação e em ódio. A aposta na educação é ainda muito importante porque séculos de exclusão afastaram da escola muitas gerações de mulheres e homens de etnia cigana, que agora, gradualmente vão iniciando e concluindo os seus ciclos de ensino.
É o princípio de que algo está a mudar?
Tenho um grande orgulho nas cerca de duas dezenas de jovens que se encontram a frequentar o ensino superior, através de um programa que tem, entre outros, o apoio do Governo da República, que trabalham, estudam, cuidam dos filhos, se afirmam nas suas comunidades, num enorme esforço para tudo conciliar e que têm alcançado excelentes resultados académicos. Comecei a ser autarca há cerca de duas décadas. Lembro-me, por via de algumas actividades que nessa qualidade fui desenvolvendo com as comunidades ciganas do meu concelho, de ter sido convidada pelo então Alto Comissário Rui Marques para participar numa ou duas reuniões sobre intervenção comunitária, mediadores comunitários, estratégias para a educação e para a habitação, entre outras matérias para a promoção de uma melhor integração das comunidades ciganas. Recordo o orgulho do primeiro “cigano” licenciado em Educação Social no politécnico de Santarém. Um amigo! Que tanto me ensinou e com quem tanto aprendi.
E de que forma combate, no seu dia-a-dia, a ostracização relativa à comunidade cigana?
Reencontro-me nos abraços apertados de pessoas que souberam manter a sua identidade, num mundo cada vez mais destituído de valores, e que me enchem de afecto quando nos cruzamos. Bato-me por uma sociedade inclusiva e mais igual. E continuarei a lutar por uma vida digna para todos e pela eliminação dos danos que anos continuados de exclusão provocaram no povo Roma. São portugueses como nós. Mas nós continuamos a achar que lutar pelos direitos destes nossos concidadãos é coisa que não nos diz respeito.
Considero muito relevantes a estratégia definida pelo Governo da República e a forma como o Alto Comissariado para as Migrações a executa em articulação com organizações, mediadores e cidadãos reconhecidos e respeitados nas suas comunidades. No entanto, não chega. Temos todo um longo caminho para percorrer; provavelmente com mais humildade e menos hipocrisia.