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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

A Literatura e o Sagrado em Moçambique

Delmar Gonçalves, de Moçambique
Delmar Gonçalves, de Moçambique
De Quelimane, República de Moçambique. Presidente do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora (CEMD) e Coordenador Literário da Editorial Minerva. Venceu o Prémio de Literatura Juvenil Ferreira de Castro em 1987; o Galardão África Today em 2006; e o Prémio Lusofonia 2017.

II Festival Literário de Fátima “Tabula Rasa”Acostuma-te a sentir as mãos de Deus através do mundo em teu redor, estudando todas as coisas cuidadosamente e com a pureza e inocência de uma criança.”

Não te movas, não faças ruído, nem sequer com a tua mente e perceberás como te são reveladas coisas ocultas para o comum dos mortais ;e essas coisas não são para contares «aos quatro ventos», nem para te orgulhares delas, mas  para que vejas a existência de miríades de seres e de leis naturais que sustentam o universo. Se entenderes bem isto, tornar-te-ás mais humilde e inclinado para as coisas do espírito.”

Há flores de todas as espécies que na terra crescem e são vizinhas. Entre elas não há disputas a propósito das cores, do aroma e do gosto; deixam que sobre elas livremente actuem o sol, a chuva, o vento, o calor ,o frio;  e cada uma cresce consoante a sua essência e consoante as qualidades que lhe são próprias.”

Todos os locais que habitamos são lugares de passagem.”

Falar da Literatura e do Sagrado em Moçambique é  claramente resgatar a história do mosaico de povos, territórios, tradições, identidades e culturas que o compõem e de que faço parte; e isso só se torna possível se  recriarmos o período anterior à colonização, revisitando as nações então existentes.

E dá-me um enorme prazer fazê-lo em Fátima, um local para mim e para muitos crentes católicos sagrado e que a mim me diz muito porque o revisito como casa que bem conheço e com especial significado.

A tradição oral foi desde sempre o centro da construção histórica tradicional dos povos de Moçambique e do reconhecimento do outro.

A Igreja Cristã Católica portuguesa e do mundo, a Igreja da Missão Suíça e as Fraternidades  Muçulmanas tiveram grande impacto com a sua presença no “status quo”, no “modus vivendi” e no “modus operandi” dos povos de Moçambique do norte ao sul no período colonial e no pós-independência também. A aculturação por vezes violenta aconteceu e foi modificando as relações sociais e diluindo as tradições e as identidades profundamente enraizadas.

Mais tarde, seriam as questões ideológicas do novo projecto político nascido do advento da independência a embater com estas tradições e identidades enraizadas dos povos de Moçambique para a construção da nova nação de várias nações.

A Igreja da Missão Suíça teve um impacto importante na formação da consciência social e política dos seus crentes, em particular, mas não só, entre os jovens. Ao desenvolver capacidades para analisar e compreender o mundo que os rodeava, através de uma educação informal, a Missão expandiu os limites cognitivos das novas gerações.

O mesmo se passou com os Cristãos Católicos e os Muçulmanos que trouxeram novas visões do mundo e do sagrado ao já rico mosaico de tradições e identidades existentes chamadas animistas e longamente postas em causa.

E é nessas tradições ancestrais de âmbito oral que nos iremos debruçar para salientar a sua importância sagrada na literatura que se produziu e se produz.

Segundo a rica tradição popular “Macua”(a etnia maioritária do território moçambicano), situada  no norte de Moçambique, os primeiros homens, depois de serem criados por Deus nas imponentes e mais altas  grutas da serra, organizaram uma viagem até à planície, descendo por vários caminhos.

Na medida em que se multiplicavam, iam-se separando, dando origem aos diferentes grupos que hoje compõem o povo Macua, diferentes na maneira de falar, de ser e em algumas expressões culturais, mas unidos entre si pelos laços mais fortes e sólidos da língua e da cultura.

Os anciãos de Maúa narram a origem prodigiosa do primeiro casal humano e do povo Macua nas grutas do grande e majestoso Monte Namuli, em tempos passados. Um cântico tradicional recorda e imortaliza o acontecimento principal desta forma:

O invejoso da minha saúde, tropeçará contra o “Monte Namúli”, monte  muito grande e importante, onde Deus criou as pessoas.

Deus existe./ Muluku okhala.

Deus cria./ Muluku Mpatuxa.

Deus diz: / Muluku oni:

Meus filhos! / Anaka!”

O mito do Monte Namúli conta-nos que o homem recém-criado olhava todos os dias à sua volta e contemplava a extensa planície verde, onde crescia toda a espécie de árvores e plantas. Um dia querendo satisfazer a sua curiosidade, decidiu finalmente descer do monte para conhecer melhor o rico panorama. Passou pelos atalhos perdidos entre as rochas. Na perigosa descida tropeçou numa pedra e caiu ao chão ferido, desmaiado. Depois de um grande sono, acordou e, ao abrir os olhos , viu o seu sangue misturado com a água de um grande riacho que por ali corria; seguiu o curso da água e observou a mistura misteriosa que se reunia nas cavidades das rochas e como se ia formando do líquido avermelhado, lentamente, uma figura  semelhante ao seu corpo : era a mulher!

Assim nasceu o primeiro homem “Mulopwana” e a primeira mulher “Muthiyana”.

Da união conjugal deste primeiro casal nasceram outras pessoas que, com o correr do tempo, cresceram , multiplicaram-se e descobriram novas terras; até que um dia chegaram à beira de um grande rio, o Malema, que corre na região. Quiseram atravessá-lo e, para isso, tiveram de construir, uma ponte rudimentar e frágil, usando cascas de árvores para fazerem as cordas que lhes serviam para o efeito.

Monte Namúli

Preparada  e concluída a ponte de cordas, começaram a passar todos os homens e mulheres que podiam, animando-se mutuamente. Porém, quando já mais de metade do grupo tinha atravessado para o outro lado do rio, as cordas não aguentaram nem resistiram, cederam e, num abrir e fechar de olhos, a ponte ruiu, caindo também algumas  pessoas ao rio.

Aqueles que ainda não haviam atravessado o rio, assustados com o facto, não quiseram reconstruir a ponte, pois, para além do trabalho enorme necessário para o fazer, pensaram que o que acontecera tinha também outras causas mais profundas e ocultas, motivo pelo qual tiveram muito medo e decidiram ficar cada qual onde estava. Por tudo isto, considera-se o Monte Namúli como o lugar da unidade originária e constitutiva do grande povo Macua.

É o berço do povo. Testemunham-no os ritos tradicionais e a ancestral literatura oral. O mito do Monte Namúli encontra-se presente nos momentos mais importantes do ciclo vital, aparece na iniciação, nos ritos de cura, nos funerais e numa grande quantidade de sábios provérbios usados em muitas  e variadas circunstâncias da vida.

A expressão “Eu venho do Namúli / Miyo kokhuma  o Namuli”, encerra todo o significado de identidade social e pessoal. Equivale a dizer: “Nós somos alguém, sabemos donde viemos, conhecemos a nossa origem e sabemos para onde vamos, temos uma finalidade na vida.”

O povo e a etnia Macua sentem-se profundamente unida ao conjunto da natureza e de maneira especial às suas forças vitais. Na sua profunda cosmovisão considera a vida (ekumi) ,como o eixo da  roda da existência e como a meta para a qual todos os homens caminham e para onde todos os indivíduos e toda  a comunidade regressa, pois dali saíram certo dia. Por consequência, tudo o que possa desenvolver e enriquecer a vida é considerado um valor fundamental, uma mais-valia; e, ao invés tudo aquilo que na sociedade, de alguma maneira, a possa ofuscar ou diminuir , é considerado como uma desgraça, um mal e contravalor fundamental.

A vida é, portanto, a lei fundamental e a aspiração suprema da sociedade Macua; a vida que penetra portanto toda a textura comunitária, está presente em cada uma das estruturas sociais e aparece nas suas expressões culturais, caracterizando a sua maneira de ser, de pensar, de reflectir e de estar no mundo.

Já no sul de Moçambique, os “Angunes”(Rongas, Ngunis e Shanganes; uma das etnias minoritárias do território moçambicano), não possuíam templos ou igrejas, nem altares, nem tão pouco sacerdotes. A sua crença era em algo de muito vago, um ente abstracto com companheiros que se lhes metiam na vida mais para incomodar do que para ajudar. Eram todos eles seres vingadores que precisavam de ser acalmados e aplacados. Este povo não se dava à prática de um culto, mas realizava sacrifícios de animais; e, nas grandes festas anuais da “Inkuaio”, praticavam-se também alguns sacrifícios humanos.

Igualmente se pode considerar como sacrificados uma velha e um cão que eram enterrados juntamente com o corpo do soberano falecido. Relativamente à vida eterna, ela era também algo em que acreditavam, mas por forma muito vaga. A sua atitude de crença consistia sobretudo no respeito pelos espíritos dos antepassados, cuja protecção invocavam.

Imperador Gungunhana

Portanto, crer numa outra vida para o espírito dos defuntos não implicava necessariamente a ideia de recompensa pelo bem, nem castigo pelo mal praticados; havia apenas o desejo de não lhes desagradar, de merecer o seu  aplauso, como mostrou o imperador Gungunhana ao recusar entregar os régulos acolhidos à sua proteção. Dizia que quando morresse, queria aparecer diante do grande Muzila, de forma digna,  de cabeça erguida e bem levantada.

Como existia o receio claro de ofender o espírito de um grande chefe, a religião tornava-se, deste modo, um factor poderoso nas decisões dos governantes. A crença na eternidade manifestava-se também quando morria alguém.

As mulheres que vinham acompanhar os mortos, para chorar e beber, pediam a este, em altos gritos que transmitisse recados aos seus parentes já  falecidos. Havia portanto a crença numa vida que se prolongava para além da morte, mas sem a dicotomia céu e inferno.

Aliás, se os espíritos atormentavam alguém, isso acontecia em geral só cá na terra; e não era para punir, mas por serem maléficos. As almas dos antepassados pareciam cumprir uma missão de protectores dos vivos.

Quando o imperador Gungunhana se sentiu vacilar perante o ataque dos brancos, foi a histórica Chaimite pedir a protecção do avô. Mas os espíritos dos defuntos podiam ser também incomodativos e perturbadores. Estariam algures certamente no reino de Deus “Mulungu”, termo com que designavam esse ser indefinido, talvez um Deus; todavia “Mulungu” significava igualmente uma pessoa importante e poderosa.

Com este ser pouco se importavam ou preocupavam as gentes do império de Gaza. Toda a sua atenção se voltava para os espíritos que se compraziam em perseguir e atormentar. Era necessário portanto, torna-los propícios, com grandes dádivas, evitando assim a sua cólera, causa de males maiores como a seca, a fome, a doença ou a guerra.

No clã dos Ronga, os dois antepassados da humanidade chamam-se “Licalahumba” e “Nsilambôuà”. O primeiro destes nomes significa : aquele que trouxe uma brasa ardente numa concha, isto é, o que inventou o fogo(…) ; “Nsilambôuà” o nome da primeira mulher, significa: a que  esmaga os legumes.

Assim, os primeiros humanos são aqueles que introduziram no mundo o fogo e a arte culinária! A ideia é interessante e parece mostrar que, para os indígenas, o que é próprio do homem e o distingue do animal é inegavelmente a cozedura dos alimentos.

Naturalmente poderia alongar-me a falar de outras tradições entre as várias etnias e povos de Moçambique e a sua presença e influência na literatura moçambicana hoje produzida ,em que o sagrado está sempre presente; mas dificilmente terminaria pelo grande prazer que me dá.

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