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João de Sousa

Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Imagem de Cascudo

“Em vez de falar Dicionário Brasileiro poupa-se tempo falando “o Cascudo”, seu autor, mas o autor não é só dicionário, é muito mais, e sua bibliografia de estudos folclóricos e históricos marca uma bela vida de trabalho inserido na preocupação de “viver” o Brasil”.

— Já consultou o Cascudo? O Cascudo é quem sabe. Me traga aqui o Cascudo.

O Cascudo aparece, e decide a parada. Todos o respeitam e vão por ele. Não é propriamente uma pessoa, ou antes, é uma pessoa em dois grossos volumes, em forma de dicionário que convém ter sempre à mão, para quando surgir uma dúvida sobre costumes, festas, artes do nosso povo. Ele diz tintim-por-tintim a alma do Brasil em suas heranças mágicas, suas manifestações rituais, seu comportamento em face do mistério e da realidade comezinha. Em vez de falar Dicionário Brasileiro poupa-se tempo falando “o Cascudo”, seu autor, mas o autor não é só dicionário, é muito mais, e sua bibliografia de estudos folclóricos e históricos marca uma bela vida de trabalho inserido na preocupação de “viver” o Brasil.

Agora, mandam dizer de Natal que vão comemorar os 50 anos de atividades culturais, os 70 anos de idade de Luís da Câmara Cascudo, o que é de inteira justiça. Bater palmas ficou muito sem sentido, depois que, na televisão, artistas se aplaudem a si mesmos, fingindo que aplaudem os acompanhantes ou o público, este último convidado perenemente a aplaudir tudo e a todos. O governo auto aplaude-se, imitando o novo costume, e o Brasil parece uma festa… encomendada. Vamos esquecer o convencionismo publicitário, diante das comemorações a Cascudo. Este fez coisas dignas de louvor, em sua contínua investigação de um sentido, uma expressão nacional que nos caracterize e nos fundamente na espécie humana.

Lendo agora o vasto documento de Joaquim Inojosa sobre O Movimento Modernista em Pernambuco (também dois tomos em véspera de quatro), vou encontrar o jovem Luís da Câmara Cascudo, nos longes de 1925, tangendo a lira nova. Não é surpresa para mim, que o saiba poeta modernista, não arrolado por Bandeira em sua antologia de bissextos. Em carta que Inojosa reproduz (seu livro contém muita coisa que vale a pena conhecer, como retrato intelectual dos anos 20), o futuro autor da Geografia dos mitos brasileiros manda-lhe dois poemas modernistas para serem publicados no Recife. Eram de um livro que em agosto se chamava Bruaá e em novembro do mesmo ano passaria a intitular-se Caveira no campo de trigo. Nunca se editou esse livro. O poeta Cascudo permaneceria inédito, sufocado pelo folclorista e historiador.

Este cronista sabia da fase poética de LCC por haver recebido dele, eram eras remotas, um Sentimental epigrama para Prajadipock, Rei do Sião, um reino “governado em francês”. Como também lhe conhecia estes Lundu de Collen Moore, que marca suas preferências nativistas sobre os mitos importados de Hollywood, e é bem típico do nosso modo de dizer em 1929:

Os olhos de Collen Moore
olhos de jabuticaba
grandes, redondos, pretinhos…mais porém
são olhos de americano,
meu-bem.
Eu sempre prefiro os seus
meu bem!

Olhos de ver no cinema,

só lembra a gente espiando
e depois é se esquecendo,
meu-bem.
Eu sempre prefiro os seus,
meu bem!

Olho de gente bem branca

que não mora no Brasil
fala fala atrapalhada,
meu-bem,
é olho de terra boa
mas porém
eu sempre prefiro os seus.
Meu bem!…

Trocando o verso inicial pela prosa, Cascudo não abandonou “mais porém” a poesia. Em sua paixão de brasileirista, vista-a no lendário, nas tradições, na espiritualidade primitiva e lírica de nosso pessoal. E registra-a com esse amor de toda uma vida fiel à sua terra e sua gente.


por Carlos Drummond de Andrade, Poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX. Drummond foi um dos principais poetas da segunda geração do Modernismo brasileiro  | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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