José Sócrates interpelou o CSM noutra impugnação, reagindo ao que poderia tomar-se por sofismas – se lhes não faltasse tão completamente qualquer sofisticação – ordenados, por minutas várias, em clara estratégia da decepção no que aos Direitos, Liberdades e Garantias diz respeito.
Confesso que a debatida questão da distribuição do processo na primeira instância me surge com a importância condicionada ao caso de caber aqui alguma competência à primeira instância. E não me parece.
A interpelação criminal relativa a actos praticados no exercício de funções de um primeiro ministro é da competência do Supremo Tribunal de Justiça. Como dispõe o art.º 11º/3/a. do Código de Processo Penal.
Não porque o processo no Supremo seja privilégio pessoal vitalício. Mas porque a dignidade e os interesses do Estado não podem atingir este (documentado) nível de fragilidade, para mais entre mãos que evidentemente merecem correcção em processo criminal.
Há coisas que não podem acontecer. Resoluções do Conselho de Ministros, uma Proposta de Lei elaborada pelo Ministro das Finanças, com aprovação Parlamentar, conversas telefónicas de um Vice-Presidente de outro Estado, entre mil outras coisas não podem ser tratadas com esta radical grosseria, abaixo de quaisquer mínimos, com o pretexto em cujos termos, à data do processo (não concedendo, porque aquilo não foi, não é e jamais será um processo) a vítima já não estava em funções.
A norma a fixar a competência do Supremo dirige-se à circunstância que define os actos e não à situação actual do protagonista da função onde se concretizaram. Garante o interesse público e não um estatuto pessoal.
A Operação Marquês não podia ter acontecido, porque aquilo nunca foi um processo. Aquilo foi uma correria de excitação em excitação, sempre na maior boçalidade, de alarde em alarde, de viagens, pretensas investigações jamais consistentes, suspeitas às quais faltou sempre qualquer seriedade, com o comprometimento de toda a gente, desde os tribunais superiores, aos idiotas que em eventos públicos quiseram associar esta pretensa glória à figura soez do execrando Moro, para eles, à data, cintilante. Este escândalo entrou no seu oitavo ano.
Mas agora o CSM vem usar a velha minuta a uso nos tribunais criminais, minuta pretensamente contida nos 118º-120º do Código de Processo Penal. Vale a pena sublinhar que em 34 anos de vigência este código conheceu 45 alterações, atestando esta hiperactividade que ante a incomodidade dos funcionários -. para quem o sistema sempre foi “muito garantístico” – a lei se tem alterado em detrimento das garantias que lhes parecem excessivas.
Mas o art.º 118º deixa, apesar de tudo e ainda, uma abertura à contestação destas pretensões, por fazer uma circunscrição de âmbito (nunca valorada): “1 – A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada (…) 2 – Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”.
Está evidentemente excluída qualquer norma de ordem superior, à qual seja devida a aplicação directa.
Mas as minutas a uso, em razão da rapidez da leitura – se acaso houver leitura – sustentam naquelas disposições a passagem de todas e quaisquer violações de Direitos Fundamentais (excepção feita ao Direito da Prova e no que à prova proibida respeita) ao regime da mera anulabilidade, como se estivéssemos diante de direitos disponíveis, cuja “anulabilidade” (jamais concedendo) dependeria aqui da respectiva arguição até ao final do acto ao qual diga respeito. Arguição instantânea, portanto. Tem sido assim.
E não pode ser.
O Direito Internacional dos Direitos do Homem faz exigências a todos os processos, sem o respeito das quais nenhum processo existe, ou pode existir.
São elas, o tribunal independente, i.e. imparcial; o processo equitativo, com audiência pública; a decisão em prazo razoável, mas não qualquer decisão, devendo tratar-se de decisão tecnicamente suficiente, sob pena de ficar em causa o direito de acesso aos tribunais, que não é o direito de acesso material às instalações, mas à tutela jurisdicional efectiva, materializada na suficiência técnica da decisão.
Sem o respeito das condições sine quibus non do processo, não haverá senão modalidades aberrantes de intenção processual. Não chegam a ser formas de processo, porque, justamente, não há processo. A figura não é a da nulidade, mas a da inexistência. Queiram-no ou não os das minutas, na pretendida glória de minuteiros que se imaginam hábeis. E isto não é e não pode ser – em latitude nenhuma da Europa e Américas – mera irregularidade sanável por falta de arguição instantânea.
Neste caso, mesmo nos estreitíssimos termos do art. 119º da Lei Processual Penal, a violação das regras da competência determina a nulidade insanável e só o Supremo poderia ter decretado a prisão preventiva – como redigi em requerimento de Habeas Corpus – e a incompetência em razão da matéria é nulidade arguível em qualquer momento, porque se não trata de mera incompetência territorial. Nulidade cuja arguição deve ser explicitamente decidida e não implicitamente dada por ultrapassada.
Lembro um aresto da Relação de Lisboa onde isso vinha tratado assim e dizia o texto que se este tribunal decidiu a questão é porque se entendeu competente para o fazer. Duas, ou mais, nulidades que se somam, não se anulam. Esta questão tem de ser explicitamente e fundamentadamente decidida e nunca o foi. A omissão de pronúncia é outra nulidade. Atacável nos mesmos termos da nulidade cujo exame e decisão se omitiram. Pode arguir-se a todo o tempo, como a questão por decidir.
Mas ainda que assim não fosse, mesmo do ponto de vista da Lei ordinária, tem de ser olhada com sensatez a última alínea do art.º 119º do Código de Processo Penal.
Proíbe-se o uso anómalo de processo especial (na expressão do preceito, “fora das previsões da Lei”). E não faz sentido ler a proibição de uso anómalo de processo especial, como modo de consentimento de outras síndromes processuais aberrantes. É exactamente ao contrário. Se nem o erro se consente, menos se consentirá a aberração.
É claro que o controlo de gente muito agarradinha nas publicações de debate, análise e ensaio – só se pode discutir Direito com os sociólogos, segundo a minha experiência – contribui poderosamente para a sustentação das mais patogénicas minutas, a demonstrarem com clareza a velha e sábia ideia de Jung para quem as atitudes patológicas também são contagiosas. E são. Sobretudo em espaços fechados tão ao gosto da terra, concebidos como fortins e vivendo como asilos.
Mas a interpelação feita por José Sócrates ao CSM é óptimo ensejo de debate público. Adiro. fazendo por ora notar o que acima disse.
É necessário passar da dureza dos factos à das ideias. Da crítica dos factos ao conhecimento da causa das coisas