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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

Incompatibilidades

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Uma situação esquecida

José de Oliveira Costa

No artigo anterior referi uma acumulação que na altura fez levantar muitas sobrancelhas, a das funções de José de Oliveira Costa como Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais com as de Presidente da Comissão Política Distrital de Aveiro do PSD. Houve um ou outro caso que andou pelos jornais, com ecos na Assembleia da República, mas vivia-se na altura sob um Governo de maioria absoluta(i).

Diria as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais nunca devem ser exercidas por quem mantenha ou tenha mantido, ou esteja destinado a manter quando sair do Governo, relações estreitas com grandes contribuintes, ou em geral com contribuintes em situações sensíveis, como por exemplo por consultores fiscais ou por dirigentes de associações de empresários, dentro do mesmo espírito que provocou em tempos a definição de um “período de nojo” para exercício de funções por parte de membros do governo em sectores por si tutelados.

Ana Catarina Mendonça Mendes

Mas, sinais dos tempos, políticos e órgãos de comunicação social interessam-se hoje em dia por outras “incompatibilidades”. Quando Ana Catarina Mendonça Mendes foi finalmente chamada ao Governo como Ministra houve quem criticasse António Costa por do Governo já fazer parte o seu irmão António como Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. E quando este foi “promovido” a Secretário de Estado Adjunto do Primeiro Ministro o “escândalo” estalou: iam ter os dois assento no Conselho de Ministros!(ii)

Situações de coexistência dentro do mesmo órgão político de dois irmãos, ou, como já se verificou com Costa, de marido e mulher ou de pai e filha, podem sugerir a existência de enviesamentos na formação de vocações para a acção política, e podem também colocar problemas em termos de dinâmica de grupos, mas em rigor não conduzem a situações de incompatibilidade.

António Mendonça Mendes

No caso de António Mendonça Mendes coloca-se contudo uma situação semelhante à de José de Oliveira Costa, uma vez que Mendonça Mendes tem sido, como todos os órgãos de comunicação social e políticos sabem, Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e responsável pela Federação de Setúbal do Partido Socialista. Dir-se-á que os governos do Partido Socialista mais recentes têm respeitado a Administração Fiscal e que o titular do cargo é impoluto, o que tanto quanto sei é verdade. Mas a situação deveria ter sido evitada.

 

O recurso – mal arquitectado – às delegações de competências

A circunstância de as pessoas que partilham as suas vidas se terem conhecido por vezes no contexto de um back ground profissional comum e se disponibilizarem para enfrentar desafios relacionados com causas políticas e outras causas públicas, levou por exemplo a que um novo Ministro da Saúde se encontre casado com a Bastonária de uma Ordem da área da Saúde, portanto de uma associação pública sob a sua tutela

O Primeiro-Ministro António Costa considerou que a situação ficaria solucionada se o Ministro da Saúde delegasse as suas competências em relação à Ordem dos Nutricionistas na Secretária de Estado da Promoção da Saúde, e vem “receitando” a delegação de competências em Secretários de Estado a propósito de outros casos que vêm igualmente a ser suscitados.

A solução não deixa de ser um tanto coxa:

  • Cavaco Silva

    os Secretários de Estado deixaram desde 1980 de ter competências próprias, passando, numa célebre formulação de Cavaco Silva, a ser “ajudantes” dos Ministros;

  • as delegações de competências concedidas aos Secretários de Estado devem ser exercidas de acordo com orientações definidas pelos Ministros;
  • a possibilidade de recorrer para o delegante – Ministro – de decisões tomadas pelo delegado – Secretário de Estado – pode em diversas circunstâncias evitar a crispação de situações e o encaminhamento dos casos para recurso contencioso;
  • não se pode excluir que em certas circunstâncias o Secretário de Estado se sinta entalado entre o administrado e o Ministro que delegou as competências.

Recentemente aprendemos / reaprendemos que Ministros e Secretários de Estado nem sempre são amigos de peito…

Seria preferível a meu ver que as leis orgânicas dos Governos definissem as situações em que o Primeiro-Ministro pode avocar competências próprias dos Ministros e que em situações em que se exijam garantias de isenção o Primeiro-Ministro avocasse essas competências e as delegasse num dos Secretários de Estado da pasta, a quem daria orientações, ou até num Ministro da Presidência ou num Ministro-Adjunto do Primeiro-Ministro.

 

O direito a negociar com o Estado

É de manter o princípio de que os membros do Governo em funções no não devem, enquanto estiverem em funções exercer funções privadas, ou promover negócios do Estado ou de entidades públicas que estejam sob a sua tutela consigo próprios ou com pessoas com interesse patrimonial equiparável como tal definidas por lei(iii).

Julgo no entanto que fará sentido facilitar a gestão de bens económicos próprios, isto é do titular de cargo governativo e do cônjuge, como se verificou ser o caso da imobiliária do Ministro Adjunto Pedro Siza Vieira, que não perdeu o lugar por entretanto ter sido reciclado por António Costa como Ministro da Economia.

António Costa

A impossibilidade de os membros do Governo promoverem negócios com entidades que tenham com eles próprios interesse patrimonial equiparável deve ser tratada como uma limitação aos próprios titulares dos cargos, que poderia ser removida, depois de o Ministro ter alertado para que a abertura de um determinado procedimento de contratação pública poderia vir a suscitar questões de incompatibilidade(iv) – avocação pelo Primeiro-Ministro com subsequente delegação.

Deste modo, não se proibiria a entidade de contratar com o Estado. A eventual não observância destas regras seria fiscalizada pelo Ministério Público e sempre invocável em sede judicial por contra-interessados.

 

Referência ao “arguidismo”

A comunicação social vai relatando numerosos incidentes e veiculando especulações, que podem recriar um ambiente pré – 28 de Maio de 1926 em que se apresentava o país como estando a saque. Se virmos bem, porém basta um aparentemente maior escrutínio da gestão autárquica e uma mais célere reacção da Procuradoria-Geral da República para se instaurarem inquéritos que frequentemente levam à constituição de arguidos para ocorrerem substituições de titulares de cargos.

Nos tempos em que Marques Mendes foi Presidente do PSD bastava um autarca ser constituído arguido para que fosse convidado publicamente a demitir-se e a ser excluído de uma futura solução(v]. Mesmo que não houvesse medidas judiciais decretadas. Era o “arguidismo”.

Ser arguido é, no actual enquadramento legal, ser declarado suspeito, o que é muito diferente de ser julgado culpado. Dar a possibilidade ao Ministério Público, que não é infalível, a possibilidade de, mesmo fora de cenários de lawfare, influir na composição de órgãos políticos tem certamente contra-indicações.

A existência de procedimento criminal contra membros do Governo não implica aliás que estes se demitam, como mostra o Artigo 196º da Constituição da República Portuguesa:

Artigo 196.º
(Efectivação da responsabilidade criminal dos membros do Governo)

1.  Nenhum membro do Governo pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia da República, salvo por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos e em flagrante delito.

2.  Movido procedimento criminal contra algum membro do Governo, e acusado este definitivamente, a Assembleia da República decidirá se o membro do Governo deve ou não ser suspenso para efeito do seguimento do processo, sendo obrigatória a decisão de suspensão quando se trate de crime do tipo referido no número anterior.

 

 Aliás num caso em que membros do seu Governo foram constituídos arguidos por factos ocorridos no exercício das suas funções – aceitação de convite da GALP para deslocações a jogos do Euro – António Costa afirmou ter sustentado que eles não necessitariam de se demitir do Governo(vi) (vii)

 

Responsabilizar os próprios partidos

Veio-se entretanto a saber que ao proporem candidaturas à reeleição de autarcas os partidos já procuram saber se estes são objecto de procedimentos criminais e em que situação estão.

Não seria mau se difundissem internamente um mínimo de normas de conduta que lhes evitassem passar por situações vergonhosas.

 

Notas

(i) Uns anos depois ouvi o Director de Finanças de Coimbra, numa reunião, queixar-se também do intervencionismo que nesta altura Oliveira Costa manifestou em relação às empresas do seu distrito.

(ii) Os “escandalizados” desconhecem, pelos vistos, que é frequente um ministro fazer-se substituir numa reunião do Conselho por um dos seus secretários de estado.

(iii) Código das Sociedades Comerciais ou outra lei expressamente aplicável.

(iv) Se a questão viesse a ocorrer com um Secretário de Estado bastaria que o respectivo Ministro avocasse as decisões

(v) Assim se abriu a porta para a primeira candidatura de António Costa à Presidência da Câmara de Lisboa em 2007.

(vi) Recentemente um antigo membro de Governo veio a sustentar que Costa teria tomado a posição contrária.

(vii) Por infelicíssima coincidência dois dos Secretários de Estado envolvidos faleceram entretanto.

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