A transformação da Índia numa potência industrial pode ser marcada por dois fenômenos: o ritmo acelerado das transformações no parque industrial indiano e as tentativas de explorar cada vez mais os trabalhadores. Nos dois casos, o objetivo é o mesmo: qualificar a Índia como uma alternativa à China – uma aspiração que os Estados Unidos e seus aliados ocidentais já não escondem.
Reportagem publicada pela Dow Jones na semana passada aponta que há uma espécie de força-tarefa internacional em curso conhecida como “China plus one” (“China mais um”). Em poucas palavras, trata-se da ideia de criar um “novo ‘chão de fábrica do mundo”.
A vantagem da Índia em relação a outras nações é óbvia: “a força de trabalho e um mercado interno comparável em tamanho ao da China”. Neste ano, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), a população indiana chegou a 1,428 bilhão de habitantes, ultrapassou a chinesa e se tornou a maior do Planeta.
A CNN, com base em dados da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), agrega: “Em 2021, a população em idade ativa da Índia era de mais de 900 milhões e deve atingir 1 bilhão na próxima década”. Nesse aspecto, os indianos são imbatíveis.
Mas não é só. Empresários reclamam que as políticas trabalhistas e sociais promovidas pelo Partido Comunista na China, com valorização de salários e direitos, elevaram os custos do setor produtivo. Além disso, em troca de investimentos e condições privilegiadas, o governo Xi Jinping passou a pressionar as empresas a transferirem tecnologia. Os prolongados – e necessários – lockdowns promovidos no território chinês para conter a pandemia de Covid-19 igualmente assustaram as multinacionais.
O que fazer, então, para não pôr “todos os ovos em um único cesto na China”, conforme metaforiza um executivo da Vestas Assembly India, filial da megafabricante dinamarquesa de turbinas eólicas? A resposta: estimular a concorrência. “Muitos países estão competindo para ser o ‘mais um’, com Vietnã, México, Tailândia e Malásia em uma disputa intensa”, sustenta a Dow Jones.
Só que a Índia, para além de fatores populacionais, parece contar com a disposição do conjunto da classe dominante para legalizar a superexploração do trabalho. Nas palavras eufêmicas e descaradas da Dow Jones, “o governo de Nova Déli vem se esforçando para tornar o ambiente de negócios mais amigável do que no passado”.
Em uma de suas últimas “cartas semanais”, o historiador indiano Vijay Prashad, diretor-geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, elencou projetos e medidas que têm levado a Índia a promover o desmonte da legislação trabalhista. No centro desse pacote de retrocessos está a proposta de elevar a jornada de trabalho, na contramão das tendências em curso mundo afora. Diz Prashad:
“Em toda a Índia, há um debate em andamento sobre a revisão dos limites da jornada de trabalho. Um projeto de lei no estado de Tamil Nadu procurou emendar a Lei das Fábricas, de 1948, que permitiria às fábricas aumentar a jornada de trabalho de 8 para 12 horas. Na Assembleia Estadual de Tamil Nadu, o ministro do governo, CV Ganesan, disse que o estado – que tem o maior número de fábricas na Índia – precisava atrair mais investimentos estrangeiros, o que seria mais fácil se a indústria pudesse ter ‘horários de trabalho flexíveis’. Protestos liderados por sindicatos e pela esquerda frearam o governo, apesar de contrapor-se à pressão do lobby empresarial (o Vanigar Sangangalin Peramaippu). Em fevereiro, um projeto de lei semelhante foi aprovado no estado vizinho de Karnataka. ‘A Índia está competindo com todo o mundo para atrair investimentos’, disse o ministro de Eletrônica, Tecnologia da Informação e Biotecnologia, CN Ashwath Narayan; ‘Só quando você tem leis trabalhistas flexíveis, os investimentos podem ser atraídos’.”
Segundo o historiador, o conceito de “flexibilidade” remete o movimento sindical do país à “liberalização do mercado de trabalho” iniciada em 1991 e marcada pela retirada de direitos. Em resposta, o Comitê Sindical de Campanha Nacional, em parceria com as chamadas Organizações Sindicais Centrais, organizou nada menos que 22 greves gerais desde então. Na última, em março de 2022, cerca de 200 milhões de trabalhadores cruzaram os braços.
A exemplo do discurso adotado no Brasil às vésperas da reforma trabalhista (2017) e da primeira campanha de Jair Bolsonaro à Presidência da República (2018), procuraram vender aos trabalhadores indianos a falácia de que, para haver mais empregos, era necessário cortar direitos. Tanto lá como cá, a desregulamentação avançou, mas sem a contrapartida de mais postos de trabalho.
O “caminho da Índia” tem contentado a burguesia global. A Dow Jones cita o exemplo da cidade de Sriperumbudur, que já era referência na produção de automóveis e eletrodomésticos. Agora, a essas empresas se somam “corporações multinacionais que fabricam de painéis solares e turbinas eólicas a brinquedos e calçados, todas em busca de uma alternativa à China”. A Índia deve se converter no segundo maior mercado mundial de turbinas ainda nesta década.
O sucesso dessa estratégia, no entanto, ainda depende de uma mudança comportamental na Índia, alicerçada num processo de êxodo rural de longo prazo. “A escassez de mão-de-obra começa a aparecer em centros industriais indianos, segundo autoridades locais e empresas. Isso porque, ao contrário da China, muitos trabalhadores relutam em mudar para longe de onde nasceram para procurar emprego”.
Por fim, no país mais populoso do mundo, “a força de trabalho continua em grande parte pobre e não qualificada”, ao mesmo tempo em que “a infraestrutura é pouco desenvolvida”. A complacência do governo indiano com a pauta ultraliberal das multinacionais pode até atrair mais indústrias de ponta – mas à custa de um trabalho exponencialmente precarizado.
por André Cintra, Jornalista | Texto em português do Brasil
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