De acordo com a imprensa, os principais dirigentes de duas das então maiores empresas portuguesas, o BES e a PT, decidiram durante um almoço que a segunda investiria na primeira 900 milhões de euros.
1. Decisão, transparência e conspiração
É na verdade extraordinário que grandes empresas cotadas publicamente possam tratar desta forma de somas de tal forma exorbitantes. A cultura do almoço de negócios não é exclusivamente portuguesa; veja-se por exemplo as instituições europeias onde as cimeiras mais importantes incluem almoços ou jantares com agenda onde frequentemente são incluídos os pontos mais bicudos.
Tudo isso me recorda um dos episódios que mais me marcou na vida e que foi o convite para assistir em 1990 a uma reunião mensal do Conselho do Ministério da Agricultura do Oklahoma, reunião aberta, realizada mensalmente em hora e local previamente marcados e anunciados, na sequência da qual, ao abrigo da ‘Lei das Reuniões Públicas’, versão estadual do Oklahoma, os membros do Conselho estavam (suponho que ainda estão) formalmente proibidos de se encontrar seja por que motivo fosse, nomeadamente para oferecer um almoço aos convidados, sob pena de serem perseguidos pelo Ministério Público por ‘Crime de Conspiração contra o Povo’.
E aquilo que é ‘crime de conspiração contra o povo’ no Oklahoma é a forma preferida de funcionamento entre nós para toda a decisão importante, seja na política seja nos negócios, sem que ninguém se lembre de que os responsáveis que o fazem estão a conspirar contra os accionistas da empresa ou os eleitores.
E não será aqui que as questões mais delicadas de compadrio, nepotismo e favoritismo que se tornaram recentemente centrais no debate político português se encontram?
2. Democracia e clientelismo
E no mais popular – e sem dúvida um dos mais extensos – estudos antropológico-políticos contemporâneos, da autoria de Francis Fukuyama a ideia de que a democracia está umbilicalmente ligada ao clientelismo é uma das mais profusamente defendidas e vem sistematicamente à baila em todos os debates.
Mas será necessariamente assim? Haverá algum indicador sério que nos aponte para uma maior prevalência de fenómenos clientelares em regime democrático (seja por razões meramente eleitorais, seja por razões familiares, tribais, interesses em negócios, etc)?
O regime de Saddam Hussein, por exemplo, levou o nepotismo a um nível raramente visto, levando a que no final do seu mandato todo o poder estivesse concentrado numa dúzia de familiares mais directos do ditador, todos eles vindos da mesma aldeia nas margens do Tigre nos arredores de Tikrit.
E mesmo olhando para outros quadrantes, não é verdade que as ditaduras norte-coreana, cubana ou venezuelana mostram um grau de clientelismo inusitado em qualquer regime democrático?
As democracias não dão naturalmente garantia de elevada moral a nenhum sistema político, nem sequer são sempre menos clientelares do que os regimes despóticos, mas têm a incomensurável vantagem de permitirem transparência e acção caso os cidadãos assim o desejem, vantagem não oferecida pelas ditaduras.
3. O telhado do vizinho
A enorme onda de comoção nacional pela proliferação de relações familiares entre membros do Governo e seus nomeados acabou em comédia quando o político português com currículo mais extenso assumiu o papel de porta-voz da indignação da oposição pela actual situação, esquecendo-se de que ninguém em democracia chegou ao nível de nepotismo, conflito de interesses ou de promoção de gangsterismo puro e duro dos governos que ele dirigiu.
É óbvio que a endogamia no sistema político-financeiro português é um dos maiores problemas com que nos confrontamos. É verdade que muito se poderia fazer através de legislação como a relativa à transparência de encontros de decisão, se os gabinetes governamentais fossem menos numerosos e menos extensos e se, fora um pequeno número de colaboradores próximos, a regra da transparência no processo de decisão que leva à nomeação de qualquer cargo público fosse convenientemente aplicada.
Em vez de grandes debates sob a demissão do primo nomeado para adjunto do Secretário de Estado, devia-se apenas reduzir o número de designações discricionárias e assegurar que as restantes são feitas em condições de total rigor e transparência.
E, claro, o primeiro passo a dar seria a de exigir dos partidos políticos mecanismos abertos, rigorosos e controlados da nomeação de candidatos a quaisquer eleições.