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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

A invasão da Ucrânia e o apocalipse nuclear!

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Se nos continuarmos a recusar ver a realidade nesta altura que ela salta perante os nossos olhos, não poderemos surpreender-nos quando ela nos assaltar de novo, provavelmente pela calada.

Na minha última passagem pela Ucrânia, lembro-me de ter ficado surpreendido com a forma como se promoviam excursões turísticas a Chernobyl e Pripyat (a principal cidade situada no perímetro de exclusão e abandonada na sequência da hecatombe de 1986), nas imediações do museu (Museu Nacional Ucraniano de Chernobyl, museu que, se escapou à guerra, recomendo uma visita) e que em Kyiv é dedicado à homenagem aos inúmeros heróis que deram a sua vida para evitar que a catástrofe fosse incomensuravelmente maior, eventualmente de recuperação quase impossível, como poderia ter sido.

Não agarrei a ideia por falta de disponibilidade, mas, apesar de os prospectos turísticos serem relativamente claros nos cuidados a ter, percebi que estávamos já numa lógica de tentativa de inversão da realidade, valorizando a recuperação da fauna e flora selvagens na sequência do abandono pelo homem da zona de exclusão, sem contudo falar das consequências catastróficas que continuam a fazer-se sentir e que podem ser consultadas, de forma abreviada, na National Geographic.

Vem isto a propósito das notícias de que centenas de soldados russos tiveram de ser evacuados de Chernobyl para hospitais em Gomel, na Bielorrússia, por sintomas de envenenamento nuclear, depois de se terem posto a cavar trincheiras para resistir às forças ucranianas.

A notícia parece inverosímil, entre outras coisas, porque implica que as forças de ocupação ignoraram, de forma flagrante, informações acessíveis, mesmo em prospectos turísticos, sobre os cuidados a ter ao visitar a zona nuclear de exclusão mas, depois de divulgada originalmente pelas autoridades ucranianas, tem sido confirmada pela generalidade da imprensa nas últimas horas.

É claro que a guerra de informação existe aqui como em todas as guerras, e que eu só teria certezas se lá tivesse estado, mas tudo o que conheço desta invasão leva-me a crer que a informação é plausível e que vai eventualmente ser confirmada nos próximos meses.

Creio que vale a pena passar em revista o que se passou e o que se disse do que se passou para nos apercebermos do que temos pela frente.

Nesta invasão da Ucrânia, Vladimir Putin copiou em Mariupol o que tinha feito antes em Grozni e Alepo: arrasar cidades à bomba matando indiscriminadamente civis e pondo em fuga os sobreviventes. Assinale-se que as forças chechenas do clã islamista Kadyrov foram usadas para as carnificinas em Grozni e Mariupol, enquanto em Alepo, a Rússia utilizou os grupos afiliados nos Guardas Revolucionários Islâmicos controlados por Teerão.

Contudo, esta invasão juntou a esse tradicional modus operandi a intimação nuclear. O Presidente russo não só ameaçou de viva-voz usar armas nucleares, como utilizou as centrais nucleares ucranianas para mostrar o que pode vir a fazer no resto da Europa.

As forças russas começaram a invasão ocupando a antiga central nuclear de Chernobyl, tendo atingido a tiro um depósito de resíduos nucleares e, de acordo com as autoridades ucranianas, instalando depois um depósito de munições junto aos reatores nucleares. Ocuparam dias mais tarde a maior central nuclear da Europa, em Zaporizhia, e dispararam tiros de tanque sobre ela.

Para tudo isto, as nossas elites ocidentais têm encontrado respostas para enquadrar na sua racionalidade o que aconteceu.

A ameaça de guerra nuclear de Putin – clara no original e repetida ainda de forma mais clara pela diplomacia russa – levou o Presidente dos EUA a uma lógica defensiva, não ripostando e assegurando mesmo que ‘Os americanos não se devem preocupar!’

Já antes, peritos de defesa norte-americanos tinham tentado desculpabilizar Putin, afirmando que Chernobyl foi conquistado apenas por que ‘Ficava no caminho para Kyiv’ e ‘para evitar o descaminho de resíduos nucleares’! (da página Wikipédia sobre o assunto).

A referida página da Wikipédia tem igualmente a posição da Ucrânia (de que se tratou de acção deliberada russa) e da Rússia, que culpa os ucranianos e os seus mentores nazis e imperialistas da OTAN por este como de todos os problemas, mas é óbvio que é a opinião dos peritos norte-americanos, tidos como exprimindo a opinião dos aliados da Ucrânia, na verdade fazendo o discurso de Putin, que tem aqui mais peso.

Nem todos os militares reformados ou ex-responsáveis do Pentágono sofrem de putinofilia (a situação, desse ponto de vista é mais preocupante em Portugal, por exemplo, mas Portugal não é o principal pilar da OTAN) mas basta atentar um pouco nos factos para entender como estas opiniões putinófilas não têm sentido.

Se o problema é apenas de Chernobyl ficar no caminho de Kyiv, então por que razão as tropas russas abandonaram Chernobyl antes de abandonar as posições à volta de Kyiv, depois da pesada derrota que sofreram? Seria absurdo acaso não tivessem razões fortes para inverter a ordem de retirada!

E se as forças de Putin são responsáveis e as ucranianas irresponsáveis em matéria de radioactividade, então por que razão as forças ucranianas não resistiram militarmente em Chernobyl ou em Zaporizhia (a maior central nuclear europeia) enquanto as russas não se coibiram de usar a força?

Mas não são só os comentadores de defesa que procuram tapar o Sol com uma peneira, de acordo com a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) nenhum dos ataques afectou equipamento essencial das centrais nucleares, sendo o tom geral dos comunicados da agência o de desvanecer preocupações.

Será que a AIEA está mais preocupada com a segurança das pessoas ou com o futuro da energia nuclear, sem a qual a agência, nos seus moldes actuais provavelmente não se justifica?

A mais tonitruante defesa da tranquilidade nuclear partiu contudo do país cujo presidente prometeu no seu programa eleitoral a construção de seis novas centrais nucleares, a França. A agência de informação estatal France 24, citando vários peritos, conclui mesmo em título, no dia 4 de março: ‘Um ataque russo para destruir reatores não tem qualquer sentido’, tentando inverter a mensagem implícita enviada pelas autoridades russas: um ataque a uma central nuclear europeia é um cenário a ter em consideração em qualquer prolongamento da guerra em solo europeu!

A lógica da agência de informação francesa é a de colocar as perguntas erradas para obter as respostas erradas.

Putin não tem como meta a destruição de centrais nucleares; tem antes a intenção assumida e repetida de fazer a escalada nuclear da sua expansão militar. E o próximo passo nessa escalada não é a da utilização de dispositivos nucleares tácticos ou estratégicos, é através de centrais nucleares instaladas.

Por um lado, as centrais nucleares têm um potencial explosivo menor, por outro lado prestam-se mais à guerra de desinformação típica do Kremlin: as forças russas só lá vão por que ‘as centrais estão no caminho’ e depois, se há tiros, a culpa é por definição do inimigo, neste caso ‘os neonazis ucranianos’, amanhã os protofascistas, militaristas da OTAN (cujo quartel general está bem rodeado de centrais nucleares, pormenor que certamente não escapou a Putin).

Mas como se explica então que os soldados russos nem sequer tenham sido advertidos de que era suicídio mexer na terra carregada de resíduos nucleares da zona de exclusão para fazer trincheiras?

Também aqui, há que entender a questão a partir do ponto de vista de Putin, não do das elites ocidentais. Na lógica do KGB, o essencial é manter o segredo do que se prepara, neste caso, que se ia invadir a Ucrânia, não é preparar os soldados para o que os espera, tornando assim impossível o segredo.

Mas mesmo assim, como se explica que o aviso não tenha sido feito depois da invasão consumada? Aqui, pensemos um pouco. Seria de esperar que os soldados russos (simples cidadãos mobilizados obrigatoriamente na maior parte dos casos) fossem devidamente informados de que estavam em risco eminente de vida?

Mesmo descontando eventuais exageros de propaganda, a total displicência com que a vida dos soldados russos foi considerada é consentânea com o deixar que estes cavem trincheiras. Estes não precisam de ter instruções estratégicas superiores para o fazer, por que sabem que em caso de contra-ataque, pagam com a vida a ausência de meios de defesa como as trincheiras.

E depois, temos de ter em conta que a aparente incompetência militar com que toda a invasão foi programada repete o que se passou nos vários cenários de guerra em que Putin se tem envolvido (a começar pela Chechénia) que só tem sido ultrapassada pelo massacre indiscriminado à bomba e terminado corpo a corpo pelos carniceiros jihadistas.

O total domínio do tabuleiro de guerra pela lógica do KGB em prejuízo da lógica militar tem este resultado!

Esta invasão da Ucrânia tem sido abusivamente usada pelo lobby nuclear europeu para criar a ficção de que a alternativa à dependência do gás russo é a energia nuclear. Ou seja, em vez de depender comercialmente da Rússia (por opção assumida), deveríamos depender da bonomia de Putin e dos seus associados na Chechénia e no Irão, ou de qualquer outro tirano, para evitar uma catástrofe nuclear entre nós. Contrariamente ao que nos querem fazer crer, trata-se de piorar, não de melhorar, a presente situação europeia de dependência de regimes despóticos.

Não depender de ditadores sanguinários e sem escrúpulos para o aprovisionamento de matérias vitais é naturalmente importante para a defesa e segurança europeias, e é também necessário entender por que razão essa preocupação foi esquecida nas últimas décadas, quando as razões para evitar essa dependência eram claras e as alternativas existiam e existem.

Mas mais importante do que isso é pensar em como diminuir as fragilidades de defesa tão grandes como as provocadas pela presença de centrais nucleares; ou seja, como descontinuar e neutralizar as centrais existentes, e impedir que outras se construam.

Fazer reentrar o ‘mau génio’ da fissão nuclear na lâmpada será certamente mais difícil do que foi deixá-lo sair, e vamos ter que viver por tempo indeterminado na lógica do equilíbrio do terror nuclear. A esse propósito, só podemos dar por seguro que não devemos nem negar a evidência nem entrar em pânico, por que isso só serve para convencer os déspotas de que a arma nuclear é o meio mais eficaz para atingir os seus fins.

Num curtíssimo espaço de tempo, a humanidade descobriu a forma de se autodestruir, levando com ela a vida que conhecemos no Planeta. De lá para cá, o melhor que a humanidade encontrou para evitar que a sua descoberta se materializasse num apocalipse foi a célebre estratégia ‘MAD’, expressão que tem um significado duplo na língua inglesa: é simultaneamente o acrónimo de destruição mútua assegurada e a palavra ‘louco’.

O ataque russo às centrais nucleares ucranianas serve também para nos darmos conta de que não podemos pensar na realidade como um armário de gavetas que podem ser analisadas uma a uma. Não é possível separar a defesa, da economia, da política, ou do ambiente, como tão pouco é possível separar os impactos do uso de energia no clima de outros impactos ambientais. É necessário ter tudo em conta, e pensar de forma independente, cuidando em não deixar que os interesses gerais sejam parasitados por interesses particulares.

Se nos continuarmos a recusar ver a realidade nesta altura que ela salta perante os nossos olhos, não poderemos surpreender-nos quando ela nos assaltar de novo, provavelmente pela calada.

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