O alegado défice de investimento público e as suas prioridades.Tanto à esquerda como à direita sucedem-se as críticas no sentido de que a política orçamental e os procedimentos de execução de Mário Centeno menosprezam o investimento público, entendido como formação de novo capital fixo, e, assim, prejudicam o desenvolvimento.
Não acompanho essa crítica, cabendo-me recordar que nem todas as despesas de investimento / capital têm necessariamente mais utilidade que as despesas correntes, como sabe quem quer que se interesse por microeconomia pública e por análise custos – benefícios.
Por outro lado é de rejeitar o retorno à euforia dos grandes projectos, que compromete a estabilidade financeira, e definir critérios de elegibilidade dos investimentos – uma maioria de 2/3 no parlamento não é propriamente uma garantia de racionalidade económica.
Em matéria de critérios entendo que, na actual situação das Finanças Públicas, seria de privilegiar:
- os pequenos e médios projectos em detrimento dos grandes;
- os investimentos em organismos ou estabelecimentos já instalados, em detrimento dos investimentos exigidos pela criação de novos organismos ou estabelecimentos;
- os investimentos de racionalização e aumento de produtividade em detrimento de investimentos em aumento de capacidade;
- os investimentos em equipamentos em detrimento dos investimentos em construção civil;
- os investimentos na viabilização de prestação de serviços objecto de consumo colectivo ou semi-colectivo em detrimento da produção de bens e serviços de consumo individual;
- os investimentos com um ciclo de realização curto e de produção imediata de efeitos, em detrimento dos investimentos com efeitos plurianuais, os quais, a existirem, deverão ser previamente orçamentados em todo o horizonte de execução.
As recentes decisões anunciadas em matéria de construção de pequenos troços rodoviários, de reequipamento do Metro de Lisboa e da Transtejo / Soflusa poderão ir no sentido que defendo. Também no domínio do equipamento hospitalar e em geral do funcionamento dos serviços de saúde há exigências que não poderão ser postergadas a pretexto do controlo de custos.
Parece-me aliás de manter a abertura, esboçada por Pedro Passos Coelho, à concessão da construção e exploração de infraestruturas por privados apoiados por financiamento comunitário sem envolvimento de capitais públicos, desde que não seja pedido às entidades públicas que comparticipem nas despesas de exploração.
O resgate de PPP como forma de investimento financeiro
Para além do investimento público propriamente dito – em formação de novo capital – podemos conceber que o Estado aplique disponibilidades com vista a recuperar a exploração de obras, equipamentos e actividades que concedeu em condições que se vieram a revelar demasiado onerosas.
Não deixa de ser curioso que na construção de vias de comunicação o Estado tenha saltado da frigideira das empreitadas, cujo custo derrapava por força das revisões de preços e de trabalhos a mais, para o lume da celebração de contratos de PPP, cujos custos derrapam em função de mecanismos muito mais complexos.
A hipótese que, com alguns interlocutores, fui colocando nos últimos anos em cima da mesa, e talvez valha a pena examinar brevemente seria, após o reembolso da parte da dívida ao FMI com juros mais elevados, prosseguir a estratégia de redução de custos com o resgaste de algumas PPP, ou até com a aquisição integral ou parcial das respectivas sociedades veículo e renegociação de condições financeiras e até operacionais, conseguindo-se por esta via, mediante a aplicação de meios financeiros abaixo da linha uma redução de encargos acima da linha, e inclusive uma redução do saldo primário (saldo sem juros).
A ir-se para uma estratégia desse tipo julgo que será preferível que o Estado recupere prioritariamente o controlo dos negócios que sabe efectivamente gerir, como o das vias de comunicação, em que os parceiros privados são sobretudo construtoras e bancos, deixando para mais tarde a situação das parcerias hospitalares em que a parte privada tem criado soluções organizativas próprias que o Estado pode ter dificuldade em fazer substituir a meio do contrato.
Tenha-se no entanto em conta que as janelas de oportunidade se poderão estar a fechar: por um lado a época do dinheiro barato poderá estar a acabar, por outro não foi possível ou não se quis aproveitar o colapso do BES / organização do Novo Banco para tomar conta das posições do BES nas diversas sociedades veículos em que este participava.
Recuperação de posições nas empresas privatizadas como forma de investimento financeiro do Estado
A recente tentativa do Bloco de Esquerda no sentido de que “o Estado resgate a propriedade e a gestão da rede básica de telecomunicações, incluindo a rede de infraestruturas de telecomunicações fixas por cabo (fibra óptica e rede analógica), redes das forças de segurança, redes de emergência e de segurança e protecção civil (SIRESP) e redes de sinal audiovisual (televisão e rádio)”, foi descartada pelo Partido Socialista por considerar ser impossível reverter as privatizações já efectuadas durante sucessivos anos.
No entanto pensou-se inicialmente acautelar a defesa do interesse estratégico nacional através da Golden Share na PT embora nenhum procedimento alternativo tenha sido ponderado quando este mecanismo foi descontinuado quando a União Europeia o considerou ofensivo da concorrência. Aliás no plano financeiro foram ignoradas as críticas de Luís Campos e Cunha à ausência de compensação do Estado pelos accionistas da então PT que beneficiaram das mais valias decorrentes da extinção da Golden Share.
Não se pode entretanto negar que a própria recomposição do sector em termos empresariais criou uma situação nova, e que a intervenção proposta seria complexa e talvez excessivamente onerosa.
Já a privatização dos CTT é muito mais recente, foi concertada com a equipa de gestão em funções, cujo presidente iria transitar para a gestão privada, e merecia ter sido considerada escandalosa, pois, como escrevi na altura Os “mercados” toleraram o que não seria normal que acontecesse: que depois de efectuada a avaliação da empresa e lançada a privatização fosse publicado um Decreto-Lei alterando o regime dos serviços postais, que o Estado viesse dizer que ia ficar com os activos e responsabilidades do fundo de pensões, mas só depois de concluída a privatização, que o Governo anunciasse que a administração ia ficar a mesma, que a licença bancária anunciada só fosse concedida pelo Banco de Portugal depois de dadas as ordens de compra.”
Acresce que, apoiando-se num mecanismo da lei – quadro das privatizações que visava dinamizar a bolsa e não maximizar a receita para o Estado (como se não fosse essa a justificação da alienação no período da troika), a privatização se fez pelo valor de avaliação, talvez excessivamente baixo e que teve em conta o padrão de actividade existente. Hoje em dia, perante a estupefacção geral, os CTT enfrentam críticas quanto ao serviço universal, conhecem problemas quanto às receitas de exploração e vêm os resultados a baixar mas distribuem dividendos superiores aos lucros. Ilegalidade? Face ao Código das Sociedades Comerciais talvez não, uma vez que, como explica a Gestmin, “accionista de referência” dos CTT , é possível distribuir “reservas livres”.
Assim o modelo de negócio dos CTT passa pela degradação progressiva do serviço postal universal e pela desactivação de instalações (com criação de postos em papelarias e juntas de freguesia), que podem ser alienadas, criando disponibilidades não afectas à exploração, e fabricando, em termos de balanço, mais reservas livres a distribuir. Há quem chame a isto “desnatação”.
À hipótese de nacionalização colocada pelo PCP António Costa contrapôs uma possível cessação futura de concessão por incumprimento de serviço público universal. Ora tal cenário não tem a menor viabilidade, pois que a concessão, ao contrário de outros casos, não se fez com afectação temporária de um estabelecimento que regresse ao Estado no fim da concessão.
Costa ilude-se ou ilude-nos. Com a privatização e mesmo que prosseguindo a sua actual estratégia de desinvestimento operacional, os CTT continuarão a ser por muito tempo a única entidade que possui uma rede de estações que lhe permitem concorrer a um eventual concurso de atribuição de nova concessão. Como explica a Gestmin, no texto já referido, ”É verdade que, ao contrário doutros casos em que é fácil ir ao mercado e procurar concorrentes, neste caso os CTT têm a tecnologia, a infra-estrutura, as pessoas, as competências”.
De forma que ou se vai por nacionalização ou, sem renunciar abertamente à nacionalização, por aquisição progressiva por parte do Tesouro de posições no capital social dos CTT que permitam ao Estado adquirir uma posição que permita cercear os desmandos.
Os correios do Estado são coisa do passado? Atenção que Trump ainda não privatizou o US Postal Service…
Tapar buracos como investimento?
Não estou a falar da posição que me disseram o então ainda assistente Manuel Pinho atribuir ao keynesianismo nas suas aulas em Económicas, mas sim da exemplificação da reposição de capital na Caixa Geral de Depósitos como investimento público, que é da lavra de Mário Centeno.
Espero que fosse só uma cautela, enquanto o Eurostat não se pronunciava. Agora que o fez incluindo no défice a recapitalização da CGD, que o Professor Mário Centeno não contribua para deseducar os seus alunos, que, de certo modo, somos todos nós.
Durante a parte inicial da minha carreira profissional exerci funções no Departamento Central de Planeamento, nos serviços então responsáveis pelos “Investimentos do Plano” vulgo PIDDAC, e, acreditem-me os leitores, sei do que falo.
Parece estar a ser apenas considerada a tomada de participação na sociedade-veículo do SIRESP, mas por razões operacionais e não financeiras.
PS chumba resgate público da rede básica de telecomunicações
A forma como a Golden Share foi efectivamente utilizada prestou-se a polémica e vai ser inclusivamente discutida em sede judicial, mas isso são outros contos.
A privatização dos CTT e a estranha tolerância dos “mercados”
“Primeira Linha: Os Planos do Accionista de Referência dos CTT”, Jornal de Negócios de 22 de Fevereiro de 2018.
Não de “renacionalização” – os CTT nunca foram anteriormente privados.
Wikipedia, Serviço Postal dos Estados Unidos.