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Sábado, Novembro 23, 2024

Isabel de Sá, A alegria da dúvida

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

Ed. Exclamação 2021

Quantas vezes darei comigo a dizer que gosto de livros elegantes, capas atraentes de edição cuidada, bom papel, boa letra…direi mil vezes até que se torne habitual o amor ao livro que o poeta escreveu, e se tenha cuidado com ele, o cuidado que merece.

Este é um caso especial, uma antologia feita por uma pintora, Graça Martins, que ao  escolher os seus poemas preferidos das obras de Isabel de Sá, os acompanha com o cuidado editorial que merecem. Sonho de qualquer poeta…

A foto da capa é linda, um rosto entre o claro escuro na alegria da dúvida.

E como não gostar de um livro em que o primeiro poema afirma “Porque sem Beleza não se aguenta estar vivo”?

De Beleza se vive, de Beleza se morre. Mas permanece no rasto que deixa a alegria desse abismo iluminado, sempre de regresso, quando menos se espera.

Isabel de Sá evoca nos seus poemas algo da surpresa do ser e do dizer dos surrealistas, que deixam os versos em aberto, na alegria da dúvida que nos surge no título. Herdeira da antiga cultura filosófica e literária que nos tempos que correm muitos preferem esquecer, Isabel de Sá inova e renova, na sua linguagem poética, o prazer do Belo, da palavra que se ama e se declara amada, como no Cântico dos Cânticos.

Poderia citar Descartes, pois há ironia, nesta alegria da dúvida. Descartes com o conceito de dúvida metódica interpelou o real, mas passou ao lado da mais bela irrealidade que poderia viver (ou sentir). Não, não é de Descartes que devemos falar, mas dos que são disruptores dos sentimentos, da consciência e do verdadeiro conceito de existir: pois sem Beleza não se aguenta estar vivo?

Em KAFKA CÉLINE E MAIS ALGUNS (p.17) a última estrofe refere-se ao que é estranho (por ser outro):

o estranho dá vontade

de fugir

ensombra a beleza toda.

E contudo é na capacidade de estranhar e de se estranhar que se revela a obra de um criador:

Chegada é a hora propícia às sombras.

 Do nada estoiram visões. Impossível 
esconder o rosto ou fugir ao tumulto.
As palavras agitam-se em filamentos
de luz. O poema transforma
o nosso rosto naquele que desconhecemos.
Necessito de beleza, fortalece-me
a destruição, o desejo.

(p.11)

As imagens falam, e também se fala dentro das imagens. Perigosamente, num mundo perigoso, em que os homens são infelizes “porque se esqueceram de amar” (p.13). Amor e beleza, a única união que liberta as palavras certas, no mundo descrito e feito de incertezas.

No poema Manhã de Agosto, lemos uma espécie de autobiografia, o momento em que se diz – e  é importante esse momento – que a poeta quer  arrastar o seu amante “para esse universo / onde a vida é trocada por palavras”. E a poeta descreve  o que tem lido, qual a emoção da primeira leitura, o que a impressionou em Blaise Cendrars quando ele perdeu a mão direita, diz ainda que tem lido os poetas da sua geração, ainda lembra o primeiro poema que “inaugurou ” a vida nela. Vida que ficará para sempre ligada à escrita poética, a difícil, a que narra, mas com a palavra certa. Leu Musil, guardou dele uma frase especial, e fala também das música que ama dos compositores preferidos: Schubert, Brahms, interrompendo um quotidiano  de que está cansada, pois guarda a sensação que nada do que ama é vida, a vida passa-se lá fora, não tarda chegará o Inverno ” a morte no lençol”, o desconforto que se adivinha. Os últimos versos não anunciam um fim desejado, mas exprimem a dôr da razão que se perde, a cabeça irreal, a morfina que acabe com o tormento, mas num toque de reversão desse momento cruel, a recuperação do possível : tomar uma aspirina, permanecer em casa.

A solidão alivia os poetas, quando se sentem perdidos no mundo das palavras, sejam elas incisivas ou até surreais. Porque é preciso aguardar até que a palavra que súbito irrompe não fecha, não prende, antes abre de novo as portas do universo (p.18-19).

Em O Pó Negro Da Cidade a visão da cidade é de facto negra: tudo rotinado, os seres descritos, cada qual com os seus hábitos, dos mais elegantes aos mais pobres dementes, aos mais abandonados, na infância como na velhice. Descreve-se “a vida mercantil” a vida, em todos os sectores está à venda, e só mesmo no último verso uma pequena luz de esperança: “o filho recém-nascido, e um futuro qualquer para iludir a vida mercantil”( p.22).

Mas volta-se ao poder das palavras, no poema a seguir:

Tragédia e Paraíso Sempre:

O poder redentor das palavras
bala no coração até ao fim
mineral escondido no poço
escuridão no olhar dos amantes

….

a loucura brilhando no rosto

(p.23)

Graça Martins, na sua escolha, equilibra a dimensão social com a dimensão mais íntima dos poemas, em que o amor, o desejo e a pulsão do encontro estão presentes. Não descurando um certo realismo que dá aos versos, cuidadosamente escolhidos, uma teatralidade que torna visíveis os meandros negros da paixão: “Dir-me-ás que a paixão se desfez, / que já esqueceste o nome e os poemas”. (p.25)

Mas há um esplendor no instinto que leva os amantes ao seu encontro, e esse esplendor atravessa toda a sua escrita poética, mesmo no meio da dor da separação.

Isabel de Sá exprime de forma genuína e exemplar a solidão de quem ama, mesmo quando é amado de volta:

Só lume dos teus beijos rompe

a treva onde a solidão nos mata.
Enrolamos a vida no escuro,
na semente de um amor atribulado

Tudo o que disseste
no desaforo da paixão
só podia incendiar a vida inteira
e encher de esperança o universo.

(p.31) 

Assim entre o prazer temido e procurado e o deslumbramento de um universo que se abre, vão correndo os poemas, e os dias.

Já referi que há poetas e vidas e obras de autores que foram lidos e são escolhas de preferência: ou porque se mataram, ou porque morreram, deixando uma obra feita.

Mas há outros poemas, igualmente elaborados mas mais intensos no desvendar do amor que se vive e a palavra descreve, como palavra que evoca, e vive ainda o que já foi vivido:

Lembrar-te, é amar os corpos que partilhamos. O que me atrai em ti pertence à sabedoria do texto, à primeira palavra murmurada. O que me atrai no amor é a indeterminação, o impulso inicial….É na treva que sou obrigada a reconhecer o que escrevo. Sucumbo a uma grave abstracção de pensamento donde chego a sair tocada pela invocação da palavra (p.41).

Este incessante falar de amor, de prazer e de paixão não descura nunca a palavra que é inicial e quase iniciática, pois é por ela que se inicia o encontro e o fatal desfazer do sentido e dos sentidos. Que depois só a mesma palavra poderá recuperar, no seu fulgor.

O longo ciclo  de Chegado era o Tempo (p.78-84) tem para mim uma súbita alteração no discurso poético, e vem-me à memória Herberto Helder, com as inúmeras crianças que vivem nos seus poemas de A Colher na Boca, entre rosas e sangue, o sangue da mulher que dá à luz. As crianças surgem entrelaçadas nos versos, como aqui, neste ciclo, as aparentes vivências da infância nos seus modos vários, nem sempre inocentes – mas quem decidiu que a infância é inocente? – O olhar de uma criança é antes clarividente e determinará o seu futuro no momento presente.

O texto, na prosa poética escolhida como modo de dizer, em nada altera a subtileza do que é dito. A Vida está ali, o caminho, e a poesia, o amor e a necessidade absoluta de beleza permanecem, intocáveis:

Elevando a voz, a criança continuou: Apenas a música. Necessito de beleza. Fortalece-me a destruição, o desejo. / Pederastas disseram não haver definição para esse paraíso: os olhos do menino. / Falaram de perfeição absoluta, portas abertas a rios (p.79).

E numa espécie de ampliação do ciclo, outros poemas, com algo de mais surrealismo na expressão, numa escrita de associação de ideias, são retomadas imagens que surgem mais uma vez, como um contar de uma infância que Jung certamente analisaria à luz do seu conceito de puer eternus, a criança eterna, um animus que é especialmente activo nos grandes criadores e nesta obra escolhida por Graça Martins se revela plenamente. Temos de ler e reler, com o cuidado que cada imagem nos pede.

Crianças sem memória desmaiavam olhando a luz. / Seus dedos procuravam contacto. / Não suportavam seiva de raízes, nem medo / Um lençol de terra sobre a face

….

A rapariga aparecia, a solidez da face, os dentes alinhados, belos. O olhar da rapariga, violento eclodir da folhagem (p.87) 

Herberto Helder não diria melhor.

E passamos aos textos de biografia já a fechar um livro que foi de espantosa leitura, na intensidade da expressão, na busca da palavra nua por ser a palavra certa, sem labirintos e rodeios, mas tendo no coração uma experiência sempre procurada: a da beleza, em si, como nos outros muitos que cita.

As páginas 103, 104, cito apenas para que sejam lidas, não cabendo neste espaço exíguo a transcrição. É um apelo aos leitores. Leiam, procurem, para encontrar quanto de si se encontra nestes poemas. Entre ironias delicadas e verdades mais duras, por ali passou, e passa ainda a nossa vida.

Deixo-os com a CONCLUSÃO (datada de 1997)

Fui amante da morte
e da beleza. Vi a loucura,
acreditei na vida.
Da infância falei
como lugar de abismo.
O prazer
foi também a grande fonte
de perturbação e alegria.
Lembrei as mulheres
que recusaram submeter-se,
escrevi palavras fúnebres.
Não poupei a adolescência,
o coração magoado
e não soube que fazer
de mim fora das palavras.
Escrevi para desistir
e depender
e ter identidade.

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