Isabel nascera sem compaixão. Viera ao mundo nua, crua. Abrupta que nem um javali. Comera todos os escrúpulos desnecessários no primeiro café da manhã da existência e saíra para o mundo assim. Era uma temeridade.
Quando pequena, roubou o cofre da quermesse, tocou fogo na sacristia e deu um jeito de rasgar a batina do padre bem na hora da missa. Dizem que ele havia se metido a besta com ela. “Demorado” nos afagos paternais então ela tratou de colocar ele em seu lugar. Foi um pandemônio. O padre de ceroulas, a hóstia numa mão, o cálice na outra, as beatas desmaiando e Isabel gargalhando que nem caminhoneiro na fila da boia.
Na adolescência, fazia disputa entre seus pretendentes. Não era bonita, mas tinha carnes, por isso despertava a cobiça dos marmanjos. Isabel se vingava fazendo-os passar por uma sádica gincana exigindo que eles se beijassem. Era uma humilhação. No final, ela providenciava para que todos eles terminassem no meio da praça da cidade, sujos de lama, usando batom, e com o fiofó de fora. E ela ria de contentamento.
Aos dezoito, teve que se casar. Era lei na época e Isabel já passava do tempo. Escolheu um pobre coitado que se afeiçoara a ela desde criança e assim como naquela época, molhava as calças sempre que ela gritava com ele. Joaquim era um servo solícito. Se era feliz ninguém sabia, mas era notório que dedicava à esposa uma fidelidade canina.
Isabel, lá pelas tantas, entre entediada e curiosa, deu pra se interessar por política. Achava que os homens que a faziam eram uns imbecis e por falta de paciência decidiu fazer o que achava que devia ser feito. Campanha curta, sem muita verba. Fez o Joaquim pintar o único carro que tinham com o rosto dela. O infeliz passava o dia inteiro dirigindo pelas ruas da cidade fazendo propaganda eleitoral para a esposa. Pouca verba. Nem precisava. Quando ela subia no palanque todo mundo concordava com suas ideias num misto de medo e admiração. Foi eleita prefeita no primeiro turno.
Em seu mandato derrubou corruptos e refez leis. Com ela não tinha isso de empreiteira cobrar dinheiro por fora. Arrumava um trabuco e atirava nos fundilhos de quem lhe fizesse proposta indecente. Era danada. Mas se negava a atender a população em seu gabinete. “Eles que fossem chorar suas pitangas no ouvido de outra que aquilo ali não era a sucursal da Cruz Vermelha. ” Ela dizia. Se fazia sentido ou não, ninguém discutia. Ela acreditava instintivamente em potencialização do ser humano e tinha ojeriza por assistencialismos estratégicos. Isabel ampliou a área de plantio da região, aumentou a verba para agricultura, facilitou os juros e humanizou os empréstimos. “O resto que eles fizessem. Que fossem trabalhar. ” Xingava sempre que alguém agradecia.
Um dia, o delegado da cidade foi acusado de truculência. Isabel entrou na delegacia e colocou o dito cujo pra correr. Assumiu o posto dele interinamente. Ficou um mês de arma na cintura prendendo os bandidos e os bêbados da cidade. No final decidiu implementar um Conselho Comunitário de Justiça que era presidido por mulheres e alguns homens de olhar manso. As prisões e sentenças eram decididas na hora do café da tarde. Uma beleza. A criminalidade diminuiu em 70%. Sabedoria e firmeza de mãe. Uma eficácia só.
Isabel deixou a cidade em que nascera e foi cuidar da sua carreira política. Almejava a deputância federal. Nova campanha. Lá ia Joaquim se vestir de mascote. Isabel era uma locomotiva.
Tempos depois, já no senado, ela decidiu se separar. Reformar o legislativo, botar as raposas velhas pra correr e ser esposa eram tarefas que não combinavam. Tratou de deixar o marido em situação digna. Se ele ficou feliz não se sabe. Mas obedeceu como sempre.
Isabel pensava em campanha presidencial. Já havia aprendido de diplomacia com os democratas e de força com os comunistas. Tinha planos de implementar uma política meio termo, tipo Che Guevara tomando chá com a Rainha Elizabeth após terem deposto o último tirano dos USA. Algo assim. No seu governo a violência daria lugar à educação e a mulher finalmente deixaria de levar sopapo pelo que quer que fizesse ou que não fizesse.
Isabel ia bem nas pesquisas e estava feliz em sua vida de quase poder máximo da nação. Trabalhava das oito as vinte horas, fazia natação nas quintas e tomava um drink (Bourbon sem gelo), nas sextas. Aos sábados, sempre à noite, parece que visitava religiosamente uma jovem formosa a quem fazia todas as vontades, mas isso não se comentava nem à boca pequena. Afinal, Isabel era uma locomotiva…