A noção de islamo-esquerdismo tem mais substância social no mundo ocidental não sujeito ao islamismo que a do social-fascismo teve nos idos anos trinta no mundo democrático.
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A hermenêutica política
O debate hermenêutico-político é por natureza interminável, mas nem por isso ele me parece dispensável quando pensamos na grande ameaça que paira sobre as nossas cabeças.
Todos conhecemos o argumento que aponta o nazismo ou o fascismo como resultantes do socialismo. O argumento tem substância por várias razões (mais importantes do que as da filiação socialista de Mussolini) entre as quais as de o ‘socialismo nacional’ – tradução correcta para o ‘nationalsozialismus’– ser contemporâneo do ‘socialismo nacional’ de Estaline que ganhou na União Soviética contra o socialismo internacional trotskista.
Posto isto, não é menos verdade que o grosso do apoio inicial do Nazismo veio da direita tradicional, e as entradas reais do Nazismo nos meios operários alemães antes da conquista do poder não foram dominantes e isso pode ser verificado por quem analise com cuidado o resultado das eleições anteriores à ascensão de Hitler à chancelaria.
Na verdade, a maior parte do jargão político é vazio de sentido; a Coreia do Norte não é supostamente democrática e popular? E os generais não fizeram da Birmânia um país ‘socialista’ em 1974? E o liberalismo? Não foi em nome do liberalismo que Malthus protestou contra as leis que impediam os pobres de morrer à fome?
O problema maior está na fossilização do que se convencionou chamar esquerda e direita – e que tem apenas a ver com a forma de anfiteatro que veio a ganhar progressivamente a actividade parlamentar. Haver esquerda e direita é condição sine qua non para uma democracia fazer sentido, e isto porque quer dizer que há opções políticas, mas daí à sua cristalização no tempo, a distância é grande.
Para se passar de qualquer ideal de igualdade social ao despotismo monárquico comunista é impossível manter qualquer simulacro de coerência ideológica, mas isso é ainda mais óbvio com a passagem desse ideal ao despotismo teocrático islâmico, que me parece um contrassenso absoluto, e é também por isso que me tenho oposto à utilização dessa expressão hoje consagrada de ‘islamo-esquerdismo’.
A terminologia de ‘islamo-esquerdismo’ tem ainda um outro efeito colateral pernicioso, que é o de passar de contrabando a ideia de que a oposição ao islamo-fascismo é ‘islamofobia’ e extrema-direita. Os nacionalismos de referenciais nacionalistas diferentes odeiam-se frequentemente, não deixando por isso de ter uma raiz ideológica comum. Que o ultra-nacionalismo ocidental guerreie o islamismo e vice-versa não quer dizer que não sejam ambos manifestações diversas e de grau diverso de ideologias supremacistas, ou seja, de ideologias construídas sobre o princípio que melhor definiu a direita ou a anti-esquerda, que é o da rejeição da igualdade social.
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O fascismo de cores islâmicas
O meu primeiro escrito sobre a teocracia iraniana – publicado em ‘O Jornal’ de 11 de Março de 1983 – denominava-a como ‘o fascismo de cores islâmicas’, algo que, como me fizeram notar alguns amigos na direita portuguesa, é tratar desfavoravelmente o antigo regime salazarista, bastante mais moderado do que a teocracia iraniana.
Os traços ideológicos essenciais dos regimes jihadistas aproximam-se de uma versão radical do que foi o antigo regime dominado pelo clero, com censura, moralismo, racismo, autos-de-fé, tortura a rodos e tudo em nome de uma pretensa e exclusiva capacidade de contactar o divino.
Convém aqui, contudo, ressalvar as diferenças. Por um lado, pese embora o peso da igreja, as monarquias católicas não lhe estavam totalmente subordinadas, e por outro lado, o Jihadismo, profundamente reaccionário, é geralmente um movimento religioso de reforma que prega o regresso às verdadeiras origens (e quer Lutero quer Calvino faziam isso mesmo) mas por via revolucionária.
O Ocidente – o Reino Unido consistentemente desde pelo menos o século XIX – teve quase sempre uma posição pró-islamista, quer porque o conservantismo religioso era avesso à reivindicação social ou nacional – quer porque mais tarde o Islamismo ter sido visto como um instrumento muito útil de luta contra o comunismo ou, mais concretamente, contra as ambições territoriais soviéticas.
É só tendo em conta esse conservantismo ocidental – que sobreviveu a todas as leituras objectivas da realidade – que poderemos entender a suicida invasão do Iraque para depor um déspota nacionalista árabe e abrir o país e a região ao expansionismo teocrático e à Jihad.
A eclosão da revolução islâmica iraniana marca o momento em que a doutrina soviética resolve adaptar a si a lógica ocidental, apoiando o islamismo como forma de atacar o Ocidente e indiferente à sua ideologia e aos massacres que este levou a cabo e do qual nem os subservientes comunistas escaparam.
Depois de um curto interregno, a Rússia de Putin retoma a lógica soviética, sendo que os restantes regimes comunistas – em cada vez maior deriva ideológica – se converteram também em movimentos puramente antidemocráticos sem escrúpulos na selecção ou no currículo que não sejam os de se opor ao chamado ‘capitalismo’ ou ‘imperialismo’.
Boa parte da esquerda ocidental – e uso aqui esquerda no sentido convencional, não no sentido de coerência programática – faz o mesmo percurso, começando por tratar com indulgência os desvarios islamo-fascistas ou por serem opostos ao Ocidente ou pelo seu antissemitismo (a que a esquerda e a direita ocidentais continuam a ser permeáveis), e acabando por aderir à sua ideologia fascista através de mecanismos típicos do apaziguamento.
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O Islamo-esquerdismo
A adesão a movimentos fascistas faz-se por três vias – que se intersectam frequentemente – a da convicção, a do interesse, e a da síndrome de Estocolmo, sendo esta última a mais importante e que merece mais atenção.
A síndrome começa com um fenómeno de apaziguamento e acaba com a plena adesão à causa do autor da agressão.
O principal paralelo entre a adesão de uma boa parte da esquerda aos movimentos fascistas e nazis que vimos nos anos trinta e aquilo a que assistimos agora é o que se deu nos países democráticos, como o Reino Unido ou os EUA.
Uma boa parte dos trabalhistas pregou o apaziguamento de Hitler primeiro e reivindicou a rendição a Hitler depois de começar a guerra. A generalidade dos trabalhadores americanos também via com maus olhos o envolvimento dos EUA nas guerras da velha Europa. Mas a verdade é que o mesmo, de forma mais pronunciada, se passou no campo conservador. Até à derrocada ocidental perante o exército Nazi nos primeiros meses de 1940, Churchill foi um homem só à direita do espectro político, abundando os que queriam a paz a qualquer preço, e na direita americana eram poucos os que se opunham decididamente a Hitler.
Na verdade, o mais conceituado investigador do fenómeno da atracção dos britânicos pelo Nazismo, Ian Kershaw, conclui que ele exerceu uma influência consideravelmente mais significativa entre os conservadores que entre os trabalhistas.
Contudo, voltando aos dias de hoje, a constatação objectiva que temos de fazer é que é no espectro à esquerda do sistema político que se deu a maior penetração do islamismo, e isso aconteceu em ambos os lados do Atlântico, sendo que o fenómeno continua em desenvolvimento. Deixando, portanto, de lado a consistência das ideias ou dos programas, do ponto de vista sociológico, constata-se mais islamo-esquerdismo que islamo-fascismo no Ocidente.
A situação é naturalmente a oposta nos países muçulmanos, ou pelo menos nos que são submetidos ao islamismo, onde a esquerda se define contra o islamo-fascismo e não existe esquerda digna desse nome que seja islamista, ou seja, partidária de uma visão fanática da religião islâmica.
A esse propósito, o Tudeh, o partido comunista iraniano, que é uma antena do clero teocrático, tem zero de penetração no espectro social da esquerda e não conta para coisa nenhuma, provavelmente nem sequer para o Kremlin. Outra organização importante nos tempos do Xá nas redes clandestinas da esquerda iraniana, os Fedayn do Povo facção maioritária, não existem no verdadeiro sentido da palavra, limitam-se a ser uma etiqueta oca usada de vez em quando pelos serviços secretos iranianos. Trata-se de dois exemplos que servem para entender a máquina de desinformação teocrática, mas cuja representatividade social é nula.
Daqui concluo que, infelizmente, a noção de islamo-esquerdismo tem mais substância social no mundo ocidental não sujeito ao islamismo que a do social-fascismo teve nos idos anos trinta no mundo democrático.
Mas concluo também que há um remédio para isso, e que é o da terapia do conhecimento da realidade: obrigar a base social do islamo-esquerdismo a confrontar-se com a realidade e sair da construção psicótica imaginária que faz do islamismo.
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