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João de Sousa

Terça-feira, Julho 16, 2024

Jantamos soro de reidratação oral

O sol já tinha se escondido e a noite se impunha, o relógio marcava, 18:50 min… E nem um movimento para o jantar se passava na cozinha, os setinhos passavam e repassavam inquietos e olhavam para o lavatório nada a descongelar, para o fogão nem uma panela a fervilhar…

Ligaram o televisor para se distraírem, mas infelizmente o cartão tinha acabado.

– Mama o cartão acabou…

Eu, simulando surpresa. – Aí é acabou??? não sabia… Mas sabia é claro, dias antes tinha sido notificada, mas infelizmente estava sem dinheiro e fiquei quieta, na esperança de um milagre.

E no dia seguinte o “Milagre”. O saco de arroz voltou a subir e a pessoa que me devia teve um problema “gravíssimo” que teve que resolver e por isso não podia devolver-me o valor em questão. Não perguntei qual era o problema pois sabia que era mais uma desculpa para não pagar, e também sabia que as coisas andam muito difíceis e que todo mundo está tentando apenas sobreviver.

O vai e vem continuou, entravam e saíam a cada minuto mais desesperados, abriam a arca, mesmo a vendo vazia e desligada, pois não adiantava gastar a luz para conservar a esperança… Destacavam panelas, reviram o cesto de legumes, só um kiabo seco jazia no cesto empoeirado… pensaram em fazer uma papa de fubá de milho, mas a que tinha sobrado na marmita nem chegava para sujar a água…

Olhavam para com misto de medo e pena… E por fim a Cassula (sempre ela, escolhida para as reivindicações e pedido “in” pertinentes) pergunta-lhe com uma voz meio tímida… – Mama hoje não vamos jantar???

Olhei para ela com com uma lágrima aprisionada no canto do olho, com a voz tremula, simulando firmeza respondi:

– Claro que há… fica calma baby… Ela sorriu aliviada e pôs-se a cantar nga sakidila zambi iami (agradeço me senhor)

Fui para o quarto queria orar… Não encontrei palavras para aquele momento, apenas disse: que seja feita a sua vontade senhor. Olhei a minha volta e vi no cesto dos remédios dois pacotes de soro de rehidratação oral… peguei nos pacotes de soro, fui até a cozinha, coloquei uma cafeteira de água a ferver, coloquei uma banheira de água fria e meti a cafeteira para arrefecer… Em seguida coloquei o soro e os chamei …

Tive alguma dificuldade para os convencer de tomar, mas lhes disse que aquilo era bom para cortar a fome, e que enquanto esperávamos pelo dinheiro que não tardava a chegar devíamos todos tomar e relaxar, foi então que pediram-me, que lhes contasse situações caricatas da minha infância. Contei-lhes sobre as minhas aventuras e indisciplina no círculo de interesse, quando eu era uma Fapla pequena com pistola de pau… contei-lhes do dia que quase vi o ex-presidente, ali no primeiro de Maio, dia em que foi acesa a tocha do primeiro acordo de paz, falei-lhes da minha professora da iniciação a professora Joana, e da professora Tucha, Tininha e outros que foram passando em minha vida, falei das escolas em que estudei, da rigorosidade exagerada do meu pai… Sobre a tia Domingas, a nossa finada Titi, que vivia ao lado do cine atlântico e da varanda da sua casa, podíamos ver a matineé e até a soiré se não adormecêssemos …

Perdi-me na narrativa e quando dei por mim, tinham adormecidos, carreguei-os para a cama um por um, e o dia se fez novo… De manhã cedo a primogénita olhou para mim orgulhosa e disse: Mama… você… hummm… Assim ontem jantamos soro?

Ai preferias uma sopa de pedra?? não se preocupe hoje tem chá com pão.


A autora escreve em PT Angola


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