Você pode até se divertir com um filme de Rousseau, mas só se for capaz de gozar com planos de ritmo lento e quase não explicativos para a continuidade da obra.
Eu sei que é estranho escrever aqui sobre filmes que estão fora do círculo de exibição mais ocupado/visualizado. Mas hoje escrevo sobre o que me desperta alguma atenção – e meu leitor é que vai escolher se quer ler ou não. Não há termos econômicos nessa minha escolha, mas questões simplesmente de desejo.
Assim é que vi três filmes no site Making Off do cineasta francês Jean-Claude Rousseau: Jeune Femme à sa fenêtre lisant une lettre, que foi realizado em 1983 e tem duração de 46 minutos; Venise n’existe pas, com duração de 11 minutos, que foi lançado em 1984; e La vallée close, um longa-metragem de 2h22, realizado segundo o autor entre 1984 e 1995.
O interessante é que essas obras foram filmadas em Super-8 e só se tornaram conhecidas da comunidade cinematográfica recentemente, quando o diretor as copiou em filme de 16mm. Também importante para o reconhecimento de Jean-Claude Rousseau foi ele ter sido apadrinhado pelo casal de cineastas famosos, como os experimentais Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Os cineastas precisam desses apoios, vejam só.
Na realidade, é um superoitista que nós aqui em Pernambuco não conhecíamos. Ele tem uma particularidade na realização dos seus filmes. Cada cassete do filme Super-8 tem a duração de 2 minutos e meio e ele os coloca um junto do outro do jeito que foram filmados. A montagem é só juntar o produto de cada cassete. E assim vai até produzir um longa de quase duas horas e meia. Eu fiz isso em alguns filmes.
São filmes para quem gosta de obra artística – e não para os consumidores de filmes como produto de comunicação. Você pode até se divertir com um filme de Rousseau, mas só se for capaz de gozar com planos de ritmo lento e quase não explicativos para a continuidade da obra. Rousseau trabalha com a realidade, pois seus filmes não são abstratos.
O longa O Vale Fechado é uma espécie de documentário sobre uma comunidade habitante de uma região montanhosa, mas que tem também um vale e um rio. Em muitas cenas, as pessoas vão para a beira do rio e ficam sempre em expectativa, mas não sabemos na realidade o que elas estão fazendo. Enquanto mostra essa população, o cineasta não procura explicar questões pessoais diretamente. Busca interpretações artísticas. E isso acontece em seus outros filmes.
Interessante ver como uma produção em Super-8 pode estar ocupando um espaço de exibição no mundo da internet atual. Gostaria que Fernando Spencer estivesse vivo para ver como a sua posição de “não se incomodar com bitolas” tem uma grande vitória com esse Rousseau.
(Olinda, 30. 3. 2021)
Mais cinema de Jean-Claude Rousseau
O site Making Off está exibindo mais três filmes do cineasta francês Jean-Claude Rousseau. Assim, disponibiliza produções que mostram que se trata não de um artesão de filmes de Super-8, mas de alguém que busca e encontrou uma nova forma de criação artística. São filmes que estão fora das estruturas formais conhecidas e podem não parecer cinema verdadeiro se quem estiver vendo não se abrir para descobrir sem antes julgar.
Nesse grupo de filmes está o média-metragem Um Mundo Flutuante (Un monde flottant), que Rousseau fez no Japão. Ele fez mais filmes nesse país que ainda não conheci. Esse é um filme novo, de 2020, em que ele se inspirou num livro do século 17 de autoria do poeta Asai Ryoi e que se chama Ukiyo Monogatari (Contos do Mundo Flutuante). Certamente Rousseau não realizou esse filme com o equipamento do Super-8, mas não deixou de pensar e criar com a linguagem que criou pensando nessa bitola.
Sentimos uma obra sem montagem cena a cena e que escurece a cada alguns minutos. Mesmo flutuando em torno de um pensamento de alguns séculos passados, o tema é do mundo moderno. Claro que Rousseau se mistura com uma espécie de abstração, embora a realidade da cidade esteja sempre presente. Vemos, inclusive, algumas cenas em que o povo japonês corre durante uma passagem sísmica. E em muitos outros momentos há uma quase imobilidade. É preciso entrar realmente no filme para então sentir o que o cineasta nos quer dar a conhecer. A inspiração dele fala num mundo flutuante. É uma busca da expressão budista que predomina na cultura japonesa.
Outro filme desse grupo de Jean-Claude Rousseau é Keep in touch, um curta de 24 minutos feito num quarto de hotel em Nova York. O próprio cineasta começa acendendo uma lâmpada, sentado junto a uma mesa com uma folha de papel. São filmadas cenas quase vazias, inclusive de fala ao telefone e de olhar para fora da janela. Um filme sombrio certamente, querendo ou deixando mostrar a solidão de quem está só num quarto de hotel. Ele se concretiza num simples novamente acender da lâmpada. O título é referência a uma expressão de linguagem que nos diz “nós nos encontramos”. Coloca o título na cena final e assina.
O terceiro filme é um curta de 11 minutos e foi feito na Coreia do Sul durante o tempo em que Rousseau passou lá participando de um festival de cinema. Registra um almoço de quatro pessoas num restaurante, inclusive um deles é o diretor. Terminam e cada um sai sem mais delongas. A sala fica diretamente aberta para uma rua estranhamente. Depois que saem, demora um tempinho e vem um garçom que rearruma a sala. Tudo é filmado com a câmera fixa num só lugar sem nenhum corte.
A segunda parte é o diretor dentro de um táxi – e o que aparece é o limpador de para-brisas do carro funcionando por causa da chuva. Tudo parece simplesmente uma cena de filme. E não um filme completo. Mas certamente há um belo contexto a ser entendido pelo espectador. O nome do filme é Juste avant l’orage.
Temos um cineasta francês atual a ser acompanhado, Jean-Claude Rousseau.
(Olinda, 3. 4. 2021)
Gabo e a sua história em filme
Para quem gosta de ler romances, Gabriel García Márquez é uma figura maior. Todo mundo o conhece. Mas nunca é demais ver um filme em que amigos falam acerca dele. E com o maior entusiasmo. O filme é Gabo – La creación de Gabriel Garcia Marquez, que está em exibição na Netflix.
A direção é do cineasta inglês Justin Webster, documentarista que já fez um filme sobre o clube de futebol Barcelona. Apesar disso, trata-se de um trabalho com uma estrutura simples e que até parece uma reunião de amigos de García Márquez conversando animadamente sobre ele e seu trabalho. Começam falando sobre Aracataca, a cidade onde nasceu o grande romancista. Um deles diz que nos anos em que o livro Cem Anos de Solidão foi lançado, a cidadezinha havia se transformado na descrição de Gabo em Macondo, que terminou realmente sendo a própria América Latina. Na conversa estão Juan Gabriel Vásquez, Carmen Balcells, Jon Lee Anderson, María Jimena Duzán, Fidel Castro falando um pouquinho e até o ex-presidente Bill Clinton, que também fala sobre Gabo com entusiasmo. Em inglês.
O mais interessante é que o filme é todo falado em espanhol, com exceção da fala de Clinton. E tem todo um arcabouço da Colômbia. As pessoas falando entre si e cada um querendo dizer mais acerca do amigo. E na Netflix você pode colocar uma legenda também em espanhol e assim ficamos com uma dimensão mais latina.
(Olinda, 30. 3. 2021)
Mostra Nordestina de filmes contemporâneos
Começou no dia 1º de abril a 4ª Mostra de Cinema Contemporâneo do Nordeste, que tem apoio do governo da Bahia através da Lei Aldir Blanc. É uma mostra que vai até o dia 10 de abril, com exibição on-line. A programação em 1º de abril tinha um longa, mas não consegui ver. Vi quatro curtas.
Rasga Mortalha dirigido, produzido e roteirizado por Pattrícia de Aquino, da Paraíba. O filme se passa em torno de uma superstição popular em que a coruja voa sobre as casas e deixa assim um rastro de morte. É documentado com simplicidade e bom humor.
Já A Fome que Devora o Coração é do Ceará e foi dirigido por Raiane Ferreira, com a atriz Priscylla Pinho: a estória de uma jovem senhora que vive solitária e vai descobrindo as pequenas emoções do seu corpo. Querida! é do Maranhão e tem direção de Geovane Camargo. É sobre dois netos que vão passar dias com a avó e as dificuldades de relacionamento.
Já o Sobre Nossas Cabeças tem direção de Susan Kalik e Thiago Gomes. Da Bahia. No elenco os jovens Dan Ferreira e Danilo Mesquita. Um jovem tenta fazer com que o amigo suba com ele numa nave espacial que ele diz esperar. No dia 2, assisti ao curta B Não É de Biscoito, que tem direção de Hilda Lopes Pontes e Chris Mariani da Bahia. Um rapaz e três moças que são bissexuais debatem essa questão com bastante naturalidade.
De certa maneira, o que sentimos vendo esses filmes curtas nordestinos foi a sensação de que sempre estamos num recomeço. Nada se modifica, embora possamos ter uma história entre uma série de filmes e outra.
(Olinda, 2. 4. 2021)
Documentário da Serra da Capivara
A Mostra de Cinema Contemporâneo do Nordeste apresentou no dia 5 um longa, documentário sobre o Parque Nacional da Serra da Capivara e o nome é Niède. Acontece que Niède Guidon é a professora brasileira que dirigiu a instalação desse Parque no Piauí, que o dirige até hoje na Fundação Museu do Homem Americano, instituição responsável pelo manejo do parque. O documentário tem 2h15min de duração e realmente mostra muito bem o que é esse parque nacional de desenhos rupestres e sua importância para a definição inclusive da presença humana na América.
O fato de ter sido colocado o nome de Niède no filme piauiense, que foi dirigido pelo cineasta Tiago Tambelli, trouxe uma ideia de obra de encomenda. Inclusive, temos mais ou menos uma meia-hora do tempo de projeção mostrando a presença dessa professora. Nenhuma posição crítica foi colocada e talvez merecesse uma melhor documentação sobre a presença ou não das pessoas que moravam na Serra da Capivara e que foram expulsas de lá.
Certamente foi um erro, pois se elas tivessem sido mantidas lá poderiam se transformar em guardas do parque e lá trabalharem sem nenhum prejuízo para o monumento nacional. Niède Guidon fez um grande trabalho na instalação do Parque, mas não deveria ter a pose de uma verdadeira ditadora lá. Basta olhar o luxo do seu escritório.
E quanto ao filme, ele poderia também falar mais no que está sendo hoje o Parque e o trabalho que deverá ser feito para a sua continuidade. E não se dedicar totalmente ao que foi feito no passado.
(Olinda, 5. 4. 2021)
por Celso Marconi, Crítico de cinema mais longevo em atividade no Brasil. Referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8 | Texto em português do Brasil
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