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Domingo, Dezembro 22, 2024

Jihad no Congo

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Mas a razão fundamental para esta opção será certamente o facto – dissimulado pela comunidade internacional – de que a jihad no Congo leva já mais de um quarto século de história e que tem no seu cadastro crimes abomináveis. Mais ainda do que em Moçambique, esta dissimulação é a clara demonstração que por de trás da desumanidade e hipocrisia, ‘black lives do not really matter’.

25 Anos de silêncio

A junção dos dois ramos jihadistas – um a operar em Moçambique e outro no Congo – numa região comum que o Califado (conhecido também por Estado Islâmico) denominou de ‘Estado Islâmico na Província da África Central’, em abril de 2019, levou a que me interessasse também pelo ramo congolês, a quem foi dado o comando da nova região.

O pontapé na geografia dado pelo Califado – enfim, não é temática que deva fazer parte dos currículos corânicos – terá certamente uma explicação mais política do que geográfica. Desde 2019, a jihad em Moçambique tem tido sucessos mais retumbantes e recorrido a massacres mais sangrentos, mas provavelmente o Estado-Maior deste grupo jihadista, que cindiu com a Al-Qaeda em 2014, terá menos confiança no ramo moçambicano do que no congolês, e daí a ideia de os colocar na mesma região dirigida a partir do Congo.

Mas a razão fundamental para esta opção será certamente o facto – dissimulado pela comunidade internacional – de que a jihad no Congo leva já mais de um quarto século de história e que tem no seu cadastro crimes abomináveis. Mais ainda do que em Moçambique, esta dissimulação é a clara demonstração que por de trás da desumanidade e hipocrisia, ‘black lives do not really matter’.

De acordo com um recente relatório do Instituto de Pesquisa da Comunicação Social no Médio Oriente de 2 de abril, Jamil Mukulu, um padre cristão ugandês, David Steven por nascimento, convertido ao Islão pela organização islâmica fundamentalista ‘Tablighi Jamaat’ (TJ, apresentada como anódina organização de crentes mas que tem sido essencial no desenvolvimento do jihadismo e a que o SADF dedicou um estudo profundo em 2020) lançou a ‘Fundação Salafi’ e os ‘Ugandeses Muçulmanos combatentes da liberdade’ na sequência do assalto às instituições muçulmanas estatais que levou a cabo à frente de muitas centenas de fanáticos membros do TJ em 1991.

Em 1995, depois de peripécias várias, Mukulu e o seu grupo, bem como vários outros grupos dissidentes ugandeses, refugiam-se no Norte Kivu, na zona fronteiriça com o Uganda, com a bênção do líder congolês do tempo, Mobutu, que os uniu sob a designação de ‘Forças Democráticas Aliadas’ de que Mukulu se tornou o líder.

Antes de ir para o Congo, Mukulu passou pelo Sudão, à data, residência de Osama Bin Laden e país onde se formou a Al-Qaeda. Possuidor de múltiplas identidades e passaportes, Mukulu terá sido uma peça chave na ligação ao Al-Shabaab somaliano e toda a rede da Al-Qaeda, com passagens frequentes pelo Reino Unido, Sudão, Quénia e Tanzânia, onde acabou por ser preso em 2015, prisão que levou à sua substituição pelo seu discípulo Musa Baluku.

De acordo com um recente relatório publicado pela Universidade de George Washington, Baluku notabiliza-se pela sua psicopatia e selvajaria, insistindo em presidir às decapitações, crucificações e outras formas de assassínio correntes por parte do grupo. De acordo ainda com esse relatório, Baluku afirma hoje que o seu grupo é apenas uma província no Estado islâmico, embora ele tenha utilizado, pelo menos desde 2012, o nome de Madina at Tauheed Wau Mujahedeen (MTM).

No princípio o grupo dirigiu o essencial da sua acção terrorista para o Uganda. Estima-se que de 1996 a 2001 o grupo jihadista tenha sido responsável por cerca de um milhar de vítimas mortais e de 150.000 desalojados nas regiões ocidentais do Uganda.

No solo congolês as suas exacções contra a população civil foram diluídas no clima geral de violência animado por diversos grupos, nomeadamente oriundos do Ruanda. A partir de 2003, o grupo aumenta a sua escalada de violência contra a população local com assassínios, pilhagens, raptos de crianças e mulheres em proporção crescente, sendo que, não consegui encontrar até hoje estimativas sobre as vítimas do quarto século de Jihad do grupo no Congo, embora se vão acumulando indícios de que tem sido ele, e não grupos étnicos vários, o principal responsável pelas carnificinas e fugas de população tanto no Norte Kivu como em regiões limítrofes do Leste do Congo.

Como é possível que tudo isto se tivesse passado perante um sepulcral silêncio da comunidade internacional?

Algumas pistas servem para nos elucidar!

Comecemos pelo chamado ‘Grupo de Peritos das Nações Unidas sobre o Congo’ (GPC-UN) que durante décadas foi a principal referência da comunidade internacional sobre a segurança no país.

Em 2020, ou seja, depois de um quarto de século de currículo jihadista, um ano depois de o Califado (Estado Islâmico) anunciar que o grupo era a sua província na África Central e reivindicar, com imagens de apoio concludentes, dezenas de ataques do grupo terrorista, o GPC-UN negou que o grupo estivesse ligado ao Califado;

Em 2011 o GPC-UN, contra toda a evidência, dizia que o grupo era muito popular na zona de Beni (capital do Norte Kivu) e que a comunidade internacional se deveria aliar a ele para lutar contra os verdadeiros problemas, que seriam os grupos ruandeses.

As monstruosas mentiras deste grupo das Nações Unidas não seriam sustentáveis sem o apoio da ‘imprensa de referência’ ou das ‘organizações não-governamentais’ ou ‘centros universitários’ (que provavelmente fornecem os ditos peritos às Nações Unidas) que ocupam o espaço de análise sem que ninguém alguma vez se preocupe com duas questões fundamentais, quem paga os seus estudos pretensamente independentes e quais os conflitos de interesse dos analistas.

Apenas a título de exemplo, o chamado ‘International Crisis Group’, em 2012, acusava os que viam o grupo como emanação do ‘islamismo’ de fazerem análises superficiais; um artigo académico de uma conceituada revista publicado igualmente em 2012 argumentava com a complexidade étnica da zona em vez do jihadismo para se entender a violência, a imprensa (o Guardian neste caso), ainda no mesmo ano de 2012 conseguia noticiar os atentados do grupo em Kampala sem nunca falar da sua identidade jihadista.

Já mais recentemente, precisamente em 2017, e quando as autoridades congolesas ousaram desafiar a censura bem-pensante da pseudo anti-islamofobia, o Monde vociferou em título ‘A ameaça jihadista no Leste do Congo é uma pura invenção’.

A primeira e mais grave ficção que torna possível este estado de coisas é a da islamofobia. A primeira coisa que os jihadistas fazem é cortar a cabeça (frequentemente de forma literal) aos líderes muçulmanos que não são fanáticos ou maleáveis, sendo que de seguida procedem de igual modo com toda a comunidade muçulmana que não se submete. Por outras palavras, os piores islamófobos são exactamente os jihadistas. Todos os que no Ocidente fazem a amálgama do jihadismo e dos seus próceres pretensamente moderados com a massa do mundo muçulmano ajudam a criar esse mito.

A questão essencial é no entanto a que temos de seguir três critérios fundamentais quando lidamos com este, como de resto outros assuntos.

O primeiro é saber quem financia. Nenhuma instituição financiada pelos interesses instalados numa dada problemática pode ser aceite como independente. A título de exemplo, a Universidade de Oxford, que apenas renunciou à sua cátedra Bin Laden depois do 11 de Setembro de 2001, por muitos pergaminhos que tenha não pode ser aceite como entidade independente.

Depois os conflitos de interesses. Quem dependa por laços familiares ou por financiamentos das entidades que directa ou indirectamente promovem o jihadismo não pode tão pouco ser aceite como analista independente.

Em terceiro lugar o julgamento ético, que não é dado por regimes corporativos como o do exame pelos pares. Não há ninguém que seja imune ao erro. Mas se alguém se enganou honestamente há décadas atrás quando garantia que não havia jihad no Congo, a única opção honesta que tem é assumir o erro, pedir desculpa e explicar as medidas que tomou para não voltar a cometer e propalar o mesmo erro.

São condições simples, claras e que deveriam ser do mais elementar senso comum para a nossa sociedade.

Não o fazer é continuar a ser colaborador neste hediondo crime perpetrado contra a humanidade, aparentemente desprezada por ser apenas africana, e porque, como dizia no princípio desta crónica, é ignorada por causa da cor da sua pele.

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