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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

João de Mancelos, os Haikai

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

Tenho nas mãos o mais recente livro de poesia de João de Mancelos e encontro uma relação tranquila com um dizer de marca oriental que corresponde a uma outra forma de evolução, à medida que o pensamento taoísta se vai divulgando entre nós, pelas artes marciais, de raiz mística, e pelos hábitos culinários que nos vão habituando a sabores ora mais puros ora mais subtis e requintados.

Num post mais antigo sublinhei a forma poética mais livre, mais despojada, que encontramos nos criadores de hoje em dia, que já viveram literariamente os Modernistas, Pessoa, Almada, ou os dos anos sessenta, libertários e criativos como um Herberto Helder, um Alexandre O’Neil, Alberto Pimenta, entre outros.

Tenho nas mãos o mais recente livro de poesia de João de Mancelos e encontro uma relação tranquila com um dizer de marca oriental que corresponde a uma outra forma de evolução, à medida que o pensamento taoísta se vai divulgando entre nós, pelas artes marciais, de raiz mística, e pelos hábitos culinários que nos vão habituando a sabores ora mais puros ora mais subtis e requintados.

A produção poética, pela via das formas elípticas, condensando em três ou no máximo quatro versos, ideia e imagem, o que é mais natural numa escrita ideográfica, como a chinesa, também tem feito o seu caminho, e deparo agora com um belo livro de João de Mancelos, um livro de Haikai, poesia depurada, evocando nas suas 5 partes momentos especiais em que se demora para os iluminar. A memória, mais antiga ou mais recente ocupa um lugar especial.

Um Haiku (a forma singular do plural Haikai) é uma condensação de um súbito momento vivido, de contemplação e revelação ao mesmo tempo. Vive-se hoje em dia muito depressa e mal. O tempo é devorado por uma multiplicidade de apelos e chamamentos que impedem o silêncio e o sossego que se devia conservar nalgum canto da alma. A tirania da imagem, em permanente actualização/exposição, colide com o silêncio, com a contemplação, o retiro onde a criação genuína (a iluminação) se pode verificar.

Agora castigados, confinados à força num espaço limitado, talvez possamos apreender a beleza simples das situações descritas neste livro. São 5 os momentos escolhidos (e também o 5 tem uma dimensão simbólica no pensamento oriental: é a madeira, o 5º elemento que encontramos nos hexagramas do Yi King. Na alquimia ocidental referem-se apenas 4: a terra, o fogo, o ar, a água. Mas no Yi King encontraremos o poço com o seu balde de madeira ( que nos traz a água que é de vida) ou a árvore, com a raiz e o tronco, fortes suportes que ligam céu e terra. Há um lirismo panteísta na poesia dos cultores de Haikai, como Issa, o meu preferido, e outros (aqui remeto para a edição completa da poesia oriental chinesa, da Pléiade, com excelentes traduções para quem, como eu, não pode ler no original) ou Bashô com a célebre rã que se tornou emblemática, e em geral todos citam.

Nas cinco partes em que divide o livro, João de Mancelos faz, um pouco à maneira de Proust, uma recuperação dos momentos da sua vida vivida, da adolescência (em que quase cada poema respeita uma das normas desta prática, titulando os meses em que situa os versos) até ao momento em que escreve, já distanciado das paixões iniciais: as Memórias, “pássaros invisíveis”, o Silêncio (forçoso seria neste contexto, aludir ao silêncio), Boca a Boca (o desejo, a sua finitude), e finalmente a meditação da escrita, nos Poemas Do Lume.

Há que ler tudo, para que o livro no seu todo nos envolva. Abriu com um beijo inacabado, como são todos os primeiros beijos dos amantes de que também Rilke falava: na juventude só amores impossíveis.

Mas termino com o último trigrama, com uma vida já amadurecida, e sob outras influências (Celan, talvez?) e o impulso que leva, no poema, ao desejo mais nú, mais despojado, que só o silêncio permite:

desce os degraus
desce os degraus,
poema a poema,
até ao silêncio.

 

 


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