“Meu Deus, como a gente se divertiu, obrigada por tudo. Por prestar atenção a todas as harmonias e melodias, por amar cada momento da vida como se não houvesse amanhã, por sempre me fazer mudar todas as passagens, ou partidas, por valorizar tanto cada momento da vida. Obrigada pelo último olhar, pela última risada, por ser honesto, por ser um homem de família, por ter sido o melhor pai que alguém poderia desejar. Meu Amor, que os anjos e Mamãe te recebam, descanse em paz. Te amo”. (Bebel Gilberto)
Esta foi a mensagem que Bebel deixou nas redes sociais para seu pai, João Gilberto, que faleceu aos 88 anos no seu apartamento da Rua Carlos Góis, no bairro do Leblon, Rio de Janeiro, deixando-nos a todos bem mais pobres.
Baiano, João Gilberto sintetizou a música popular brasileira nos seus passos fundamentais: o ritmo, a harmonia, a técnica de canto e sobretudo a batida do violão. O seu estilo musical, apesar de revolucionário, não rompeu com a música que o antecedeu, pois João sempre gravou nos seus discos velhas composições de Ary Barroso e Dorival Caymmi, entre outros. Desde o adolescente que cantava música do rádio no altifalante da praça matriz em Juazeiro, cidade onde nasceu, ao jovem que foi para Salvador sonhando ser músico profissional, ao músico que foi para o Rio como crooner do grupo vocal Garotos da Lua, João Gilberto foi grande e único. Graças a ele, a bossa nova (termo emprestada da letra de “São Coisas Nossas”, samba de Noel Rosa de 1930) consolidou-se e a música brasileira teve portas abertas para conquistar seu lugar no mundo. A geração de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque não teria ido tão longe se não fosse a inspiração de “Chega de Saudade”, disco que João lançou em 1958. Foi no dia 10 de julho, no estúdio da Odéon, no Rio de Janeiro. João Gilberto colocou à sua frente dois microfones (um para a sua voz, outro para o violão) e gravou o que seria a versão definitiva de “Chega de Saudade”, samba de Tom Jobim e Vinicius de Moraes num estilo que, alguns meses depois, seria chamado de bossa-nova.
Com a revolucionária gravação de “Chega de Saudade”, João Gilberto dava forma e conteúdo à bossa nova, inventando um novo ritmo e uma nova forma de cantar e tocar violão. O resto é história que, como um rio com muitos afluentes, desagua no mar de nossa memória pessoal e coletiva. Com o sucesso de João revelaram-se a mestria de Antonio Carlos Jobim e do poeta Vinicius de Moraes, bem como o talento de jovens compositores como Carlos Lyra e Roberto Menescal. De 1959 a 1962, João Gilberto lançou três LP históricos e a bossa nova virou moda.
Os jovens enchiam as academias de violão de Copacabana, para aprender a nova batida e as músicas que marcavam a banda sonora da época. Nesses anos, o Brasil ganhou pela primeira vez a copa do mundo de futebol, na Suécia, e entrou num ciclo de progresso e desenvolvimento nunca visto, com a construção de Brasília em apenas quatro anos, a industrialização, a televisão, as novas estradas e fábricas: os brasileiros apaixonavam-se pelo futuro. Todos queriam surfar a onda do sucesso da bossa nova. A publicidade e a imprensa adoraram o rótulo. Kubitschek foi apelidado de “presidente bossa nova”. Surgiram o carro bossa nova, o apartamento bossa nova, o fato bossa nova, com um casaco e duas calças. Tudo virou bossa nova num Brasil deslumbrado pelo futuro.
Apesar de uma campanha recheada de sucessos, desde 2008 João foi ficando cada vez mais distante. A sua última apresentação ao vivo foi esse ano, na comemoração dos 50 anos da bossa nova. A decadência física e as questões de família, monetárias e contratuais, foram remetendo o génio para um limbo de onde só a morte o veio retirar. Desafinado na música e desafinado na vida, João Gilberto deixa-nos uma saudade imensa, pois “no peito dos desafinados também bate um coração”.
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Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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