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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

João Paulo Esteves da Silva, O coração do Adão

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

O coração do Adão, sobre este livro terei de escrever.

Não era verdadeiro o coração: era maçã, que logo apeteceu. E à primeira dentada Jeová, o culpado de tanta proibição ali perdeu a vida. Não era vida, era Verbo, e ele poderia voltar. Mas não Adão, mordido o seu coração. Eva já tinha fugido, levada pela serpente. Lilith, na treva do seu inferno, queria tão só ser amada. Mas como? Tinha sido condenada, e afastada, da treva não sairia. Que coração era este, afinal, que já niguém desejava e fazia tanto mal? Um coração dividido, não encontrava lugar… No fundo do mar Tiamat, nos altos céus a Shekina, sem saber para onde olhar… Então surge este poeta, com versos de poetar. Diz o que tem a dizer, não o que tem a viver, o que seria banal.

E aqui entra o coração, que deixo para que leiam. De Israel não quero o sonho, que é uma cruz e uma taça; só o rolo de papel com a palavra sagrada que é colocada no peito, e aí nos salva ou nos mata.

O coração do Adão

Ainda não é a vida nem a morte, por enquanto,
mas, ainda assim, pressinto a turba que se apinha, lenta,
nas praças, nas ruas, nos cafés cibernéticos, sinto
a sede de sangue nas confissões amorosas
e na defesa das causas mais belas e justas.

Homo homini lupus não é uma história a dois,
como queremos imaginar, não se trata, aqui,
do mal que um indivíduo faz a um outro;
Este ‘ homo’ da sentença é uma alcateia, só o ‘homini’ está sozinho.

Ele está sozinho e os lobisomens aumentam em redor;
Já só com asas poderá escapar, dá-lhe asas, meu deus.
Ou, então, transforma-o nalguma planta sombria.

Ou num penedo sobre o mar, uma rocha viva.
Recrutaram todas as boas almas, temo por ti.
Um rato pendente da boca dum gato terá melhor destino

 

Um coração universal, num Adão primordial de destino marcado por um deus desatento. Por isso ele é O ADÃO, e o seu coração um CORAÇÃO especial, que pulsa já antes da criação do tempo. O tempo virá depois, com a contagem dos dias, até àquele sétimo dia do descanso. Erro: nunca haverá descanso… a menos que deus lhe dê as tais asas perdidas e que o poeta sábio, na sua compaixão, implora que lhas dê.

 

João Paulo Esteves da Silva

O Coração de Adão

 

Douda Correria

2019

 

 


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